segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Trilogia dos Apartamentos - Parte III - "O inquilino" (1976), de Roman Polanski


Após quase uma década, o cineasta volta à sua temática de horror em apartamentos, que teve como desfecho “O inquilino”.
Este “clássico” do cinema moderno é essencialmente autobiográfico.
Trelkovski, polonês, está em Paris e pretende alugar um apartamento – ressalte-se que Polanski é polonês e chegou a ir morar sozinho na França, onde, aliás, vive até hoje –, e evidencie-se que é interpretado pelo próprio diretor, que provou ser também brilhante ator.
O filme traça a estória deste homem, que chega a um edifício no qual havia um apartamento que um amigo lhe indicara.
Logo de cara conhece a zeladora, uma mulher extremamente mal-humorada, que de muita má vontade lhe mostra o lugar. Ela comenta em ar de riso que a inquilina anterior, Simone Choule, atirara-se pela janela. Trelkovski pergunta se ela morrera; ao saber que ainda estava no hospital, vai atrás da mesma. Lá, conhece uma amiga da suicida, Stella (Isabelle Adjani, linda como sempre), que também fora visitá-la. A enferma não reconhece a amiga e, quando esta tenta comunicar-se, aquela dá um grito aterrorizante.
Quando os visitantes deixam o hospital, logo tornam-se amigos, e o protagonista cada vez mais obcecado com o que teria levado Simone ao suicídio.
Com o passar dos dias, vai notando estranhos comportamentos em seus vizinhos. Seja por estarem o tempo inteiro reclamando de barulho em seu apartamento, seja por ficarem horas imóveis no banheiro defronte à sua janela encarando seu apartamento.
Passa a comentar com seus amigos estes estranhos episódios que, como é costumeiro no cinema, são encarados com zombaria e descrédito. Aliás, desde a primeira aparição dos amigos de Trelkovski, numa pequena “festinha” que organiza em seu apartamento, eles são mostrados com uma identidade homogênea, mas dispare em relação à do protagonista, o que contribui e muito para que o espectador o considere logo solitário e focalize suas atenções neste personagem.
Com o passar do tempo, as estranhezas tornam-se crescentes. Num café em frente ao edifício, Trelkovski se dá conta de que tem sentado na mesma mesa que Simone costumava sentar, bebido chocolate (e não café), como ela fazia, e fumado não sua marca de cigarros favorita, mas Marlboro, tal qual a falecida.
Nesse momento, o espectador atento poderá notar a desintegração da personalidade do polonês que, na medida em que vai perdendo sua identidade, vai incorporando a de Simone Choule.
Torna-se neurótico, paranóico, desconfiando de tudo e de todos, visivelmente encaminhando-se para a loucura, sobretudo quando vai a uma loja comprar sapatos femininos e uma peruca e, em sua casa, veste-se de maneira idêntica à da suicida, com um vestido seu que ficara no armário, e maquiagem que ficara guardada numa gaveta. Sua intenção é a de assustar os vizinhos que o encaram através da janela do banheiro, mas ele próprio já perdera o controle sobre si; já se metarmofoseava em Simone.
É aterrorizante a agonia que demonstra o protagonista com a situação que lhe ocorre, muito forte e contagiante: não tem quem não se sinta na pele do locatário, quem não tenha vontade de “esganar” os vizinhos.
Ele passa então a ter alguns poucos lampejos de racionalidade. Em um deles, conclui que querem levá-lo ao suicídio e, em uma espécie de delírio esquizofrênico, acredita ter finalmente compreendido o suicídio de Simone. Procura então Stella, a única em quem ainda confiava, e com que acreditava poder contar. Esta mostra-se atenciosa e prestativa para consigo, mas, mesmo assim, Trelkovski chega ao ponto de pensar que ela está envolvida nesta grande conspiração.
Por falar em conspiração, tudo neste filme quer nos levar a crer que há uma conspiração, onde estariam envolvidas todas as pessoas que Trelkovski conhece; ao mesmo tempo, não sabemos se é apenas delírio do personagem, até porque, no transcorrer da película, há uma gradativa mudança de perspectiva, onde o espectador é levado a enxergar a trama com o olhar dos vizinhos, não mais daquele. Não sabemos se Trelkovski é mesmo vítima, ou se tornou-se psicótico, o que é recorrente nesta Trilogia. Aliás, quem assistiu “Psicose”, do mestre Alfred Hitchcock, certamente encontrará semelhanças.
Trelkovski vai sentindo-se cada vez mais perseguido, e passa a reinar uma espécie de atmosfera claustrofóbica, culminando na magistral sequência clímax, que precede a estarrecedora sequência final.
É difícil destacar algo específico neste filme, pois tudo é excelente. Não obstante, ponho “sob os holofotes” – a quem interessar – aquelas que pra mim são as principais características de um bom filme, na minha opinião todas aqui presentes:
Direção e atuação brilhantes de Polanski; roteiro fascinante; e a genial fotografia de Sven Nykvist, que fez parceira em inúmeros filmes do genial cineasta sueco Ingmar Bergman, pois, com suas sombras criou uma atmosfera pesada e capaz de conduzir o espectador bem mais rapidamente à angústia que sentia o protagonista.
Com isso, encerro esta tríade de textos, esperando que, com isso, venha a contribuir de alguma maneira a que mais pessoas procurem estes filmes em locadoras, em lojas, na internet, ou até mesmo no comércio informal. Valem a pena.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Trilogia dos Apartamentos - Parte II - "O bebê de Rosemary" (1968), de Roman Polanski


NOTA: Antes de dizer o que tenho a dizer, devo antecipar que, dada a complexidade e a numerosidade de detalhes com sentidos propositalmente coerentes com o objetivo deste filme, tive de me ater apenas aos mais importantes, ou então este texto inflaria absurdamente, quando é (ou deveria ser) relativamente curto.

Pois bem.
Três anos após o aterrorizante “Repulsa ao Sexo”, Roman Polanski nos presenteia com esta outra obra-prima, o filme mais conhecido da trilogia, além de ser tido com um dos mais assustadores filmes de horror já feitos: “O bebê de Rosemary”.
No elenco estão John Cassavetes, que fora revelado como ator (pois já era cineasta) um ano antes, pela trama de guerra “Os Doze Condenados”, de Robert Aldrich, e Mia Farrow (que despertou os olhares do público do mundo inteiro) no papel de Rosemary Woodhouse.
Adaptado do romance de Ira Levin, e vencedor de dois Oscars (Melhor Atriz Coadjuvante para Ruth Gordon e Melhor Roteiro Adaptado) Rosemary (Farrow) e Guy (Cassavetes) são um jovem casal que se muda para um apartamento com o intuito de começar uma vida a dois.
O espectador inevitavelmente simpatiza de cara com os personagens, cujo amor e sintonia parecem transbordar e contagiar a todos.
Este quadro, porém, vai paulatinamente sendo revertido, quando os vizinhos começam a ter atitudes estranhas, o que deixa Rosemary bastante perturbada. Minnie Castevet (Ruth Gordon) é uma senhora bastante solícita e inconveniente, que está sempre oferecendo coisas a Rosemary, utilizando como pretexto a “política da boa vizinhança”, mas que, com o tempo, acaba tornando-se suspeita de algo misterioso.
Quando resolvem ter um filho, o Dr. Abe Sapirstein é o médico responsável pela gravidez de Rosemary que, não obstante suas queixas de dores e diversas manifestações corporais que não parecem normais, sempre diz que nada há de errado.
Todos, aliás, parecem concordar com a idéia de que Rosemary está preocupando-se à toa, e considerar que continue a tomar os sucos oferecidos pela Sra. Castevet, preparados a partir de ervas que ela própria cultiva em casa.
No decorrer do filme, percebemos o quanto os personagens mais insuspeitos vão sendo lentamente desmascarados. Posso citar o fato de Guy, que era ator, ter conseguido um papel importante através de uma inexplicável e repentina cegueira do ator que fora escolhido em seu lugar. Ressalto também o fato de Rosemary ganhar de Minnie Castevet um amuleto feito com raiz-de-tanis – que houvera antes sido dado a uma moça que morava com os Castevet, e se suicidara –, uma espécie de planta com mau odor, responsável por dopar as pessoas, e melhor mantê-las sob influência (depois descobrimos que tratava-se, na verdade, de um fungo utilizado em rituais satânicos). Posso citar ainda a questão do mousse de chocolate que Rosemary bebe na noite em que tinha planejado conceber um filho com seu marido; ele continha um poderoso alucinógeno, graças ao qual se produziu uma das mais importantes e memoráveis cenas deste filme: a de quando Rosemary, após quase desmaiar, é conduzida à cama por Guy, e passa então a experienciar algo bizarro, uma mistura de sonho e realidade, onde parece ser objeto de um ritual, sendo que quem está envolvido são os vizinhos e seu próprio marido, e onde tem relação sexual com o demônio, quando, corporeamente, o teve com Guy.
Só uma digressão: a dicotomia delírio x realidade, presente em toda trilogia, aqui também existe. Mas neste filme há também uma outra: catolicismo x satanismo. A todo instante podemos perceber a maneira massiva com que Polanski antagoniza a pureza principiológica, moral e inocente do catolicismo de Rosemary, com a insensibilidade do satanismo. Por quê? Vocês verão.
Voltemos. A partir de então, a protagonista começa a ter certeza de que há uma conspiração, sobretudo após ouvir de seu amigo Hutch que sem dúvida havia algo de errado. Este mesmo amigo a chama para uma conversa em particular num determinado lugar, mas infelizmente não consegue comparecer, pois “estranhamente” entra em coma e, dali a três meses, morre.
Porém, deixa para Rosemary um livro intitulado “Todos eles bruxos”, com o recado de que há um anagrama a ser feito com o nome de um dos personagens de quem o livro trata. Rosemary descobre que Steven Marcato, com uma certa mudança de letras, resulta em Roman Castevet, seu vizinho, aterrorizando-a. Vai atrás do Dr. Sapirstein mas, após sentir na sala de espera de seu consultório o mesmo cheiro do amuleto que ganhara, desespera-se ainda mais e vai atrás do Dr. Hill, outro médico obstetra, que parece ser sua única esperança. Este aparentemente acredita em sua história, mas permite que Guy e o Dr. Sapirstein busquem-na. Eles a levam para casa e conseguem aplicar-lhe injeção com tranqüilizante. Quando Rosemary acorda, seu filho já nascera, mas insistem em tentar convencê-la de que morrera.
É quando a protagonista resolve saber o que há por trás de uma porta do apartamento que fora bloqueada por um armário. O que há por detrás? Absolutamente nada? Delírio de Rosemary? Ou haveria de fato uma conspiração?
Deixo oculto a vocês o final super-interessante que tem este filme, que é um choque a todos.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Trilogia dos Apartamentos - Parte I - "Repulsa ao Sexo" (1965), de Roman Polanski



Momentos há, na história do cinema, em que certos Diretores resolvem filmar uma trilogia. E a trilogia não precisa ser sequencial ou planejada; basta que a temática seja convergente.
Foi assim que um de meus cineastas favoritos - Roman Polanski - capitaneou o surgimento de uma das mais magníficas trilogias cinematográficas, a chamada "Trilogia dos Apartamentos", encabeçada por "Repulsa ao Sexo", de 1965, seguida de "O bebê de Rosemary", de 1968, e finalizada por "O Inquilino", de 1976.
Por isso tive a ideia (mais um desafio que uma ideia) de comentar cada um deles, em sua ordem cronológica, ao modo de Polanski. O presente texto versa, destarte, como seu título antecipa, sobre o filme inaugural, "Repulsa ao Sexo".
Este filme inicial é indubitavelmente o mais forte e macabro dos três.
Ressalto, antes de mais nada, que seu título original é apenas “Repulsion” (Repulsa), evidentemente mais genérico que o da tradução. Os brasileiros assim o nomearam devido ao fato de o filme centrar-se na aversão á conjunção carnal da protagonista Carol Ledoux, interpretada pela belíssima Catherine Deneuve, cujo talento é flagrante, e viria a ser confirmado mais tarde em filmes como “A Bela da Tarde”, do espanhol Luis Buñuel, realizado em 1967. Porém, Carol é aversa não tão somente ao sexo, mas aos homens em geral e às relações estreitas que estes pretendem com as mulheres constituir. É indiscutível que a protagonista sofre de androfobia.
Trata-se de um roteiro simples, mas que nem por isso deixa a desejar.
Polanski fez questão de nos mostrá-la desde o princípio como alguém que possui algum tipo de transtorno. Basta a filmagem em plano detalhe de seu olho na sequência inicial para que identifiquemos isso. Está claro o efeito da degeneração de sua psique, o que já existia desde quando a história começa a ser contada. Se por coerção social, ou se é um transtorno psicossomático inato à personagem, não discutirei aqui. Tirem suas conclusões.
Carol trabalha como manicure, e vive num apartamento alugado com sua irmã Helen (Yvonne Furneaux). Nessa esteira, a fotografia é quase uma personagem, uma vez que é a responsável pela criação da atmosfera de penumbra e angústia que embalará o espectador em todo o transcorrer da película. Polanski optou por um preto e branco, onde prevalece o preto ao branco, fazendo lembrar o cinema noir. Somos levados a observar algo que hoje, de tão corriqueiro, nos passa tão despercebido quanto as desigualdades sociais ou os preconceitos: a pressão que os homens fazem sobre as mulheres com o intuito de conquistá-las.
Percorramos as ruas de Londres juntamente com Carol, e veremos o quanto se lhe chama a atenção, e o número de homens interessados. É claro que nem todas as mulheres recebem tal assédio; mas, por menor que seja, é sempre um constrangimento à posição auto-valorativa que a cultura lhes relegou.
Mas voltemos ao cerne da questão.
A “perseguição” é tamanha, que potencializa a androfobia de Carol, fazendo-a abandonar seu emprego e viver reclusa no apartamento. E o momento é crucial, pois a irmã viajara com o namorado, deixando-a, portanto, sozinha. É quando Carol passa a ter alucinações, como a de ver as paredes rachando ou ouvir passos do lado de fora de seu quarto.
A dicotomia delírio x realidade é manifesta neste filme à maneira que o Diretor imaginou para todos os filmes que versassem sobre esta temática. Isto significa que os dois posteriores estão também impregnados dela.
Aos poucos vemos a desagregação do resto de razão que ainda sobrava a Carol, quando ela mata 3 homens que visitaram seu apartamento: o primeiro, um estuprador (fica a dúvida se este era real); o segundo, um homem que desde o começo da narrativa tentava conquistá-la; o terceiro, o locador do imóvel.
O desespero kierkegaardiano do qual se torna vítima não é somente sintomático a nível individual, mas em escala nacional (ou até mesmo mundial, onde quer que a cultura seja similar a que ora se comenta). O que Polanski quer de nós é que abramos os olhos a esta massiva “perseguição masculina”, que oprime e sufoca as mulheres, perpetuando o machismo e obstando o progresso da igualdade entre os sexos. O grito de Carol é o grito cosmopolita das mulheres.
Agora só uma observação: ignorem o ruído que acompanha o filme do início ao fim, fruto de um péssimo lançamento da Cinemagia, única a disponibilizar até então no Brasil a película em questão; ignorem também o fato de o filme ter sido realizado na Inglaterra e ainda assim só existir áudio dublado em francês. Apesar disso, estarão diante de uma grande obra de arte.