sábado, 11 de junho de 2011

"Jogo de Cena", de Eduardo Coutinho (2007)


                                                                  

                                                                                          “Cinema é montagem.”
                                                                                                        Stanley Kubrick


               Desde o advento do gênero cinematográfico o qual se convencionou alcunhar “documentário”, vocábulo proposto por Dziga Vertov no primeiro quarto do séc. XX, sabe-se que estes filmes estão compromissados com a verdade (cinema-verdade), opondo-se à ficção, e aproximando-se do que era a atividade dos primeiros cinematógrafos que, para fazer experiências científicas com câmeras, tão-somente registravam a realidade tangível.
               O que vem fazendo o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho – aliás, um dos maiores do mundo na atualidade – ao largo de mais de 50 anos de carreira, 11 longas-metragens, diversos curtas e médias-metragens e uma participação frutífera como documentarista do Globo Repórter na década de 70, certamente é algo único, totalmente inovador e digno de atenção. Isto porque registra a realidade da maneira que ela é, sem as intervenções ficcionais que muitos documentaristas tem misturado pelo mundo afora, e que fazem o documentário fugir de seu foco primordial.
               “Jogo de Cena” é seu décimo longa-metragem, realizado em 2006 mediante produção da Videofilmes, e filmado no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. A proposta, inventiva e peculiar, era filmar 13 pessoas relatando fatos de sua vida. São elas 03 atrizes profissionais (Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra) e 10 mulheres anônimas, selecionadas a partir de 83 que, atendendo a um anúncio jornal, apresentaram-se voluntariamente em estúdio.
               A cena de abertura mostra o anúncio publicado no jornal carioca de maior circulação. Assim dizia: “CONVITE: Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos.” E abaixo constavam os telefones para contato. Em seguida, passa-se ao cerne da narrativa: as entrevistas. A narrativa, diga-se de passagem, é forçosamente fragmentária, isto é, estaria supostamente afastado o caráter de unidade; mas as histórias contadas em cada entrevista ligam-se umas às outras, seja de maneira mística ou por um elo provocado pelo diretor (exemplo: há uma identificação nos “subtextos”, isto é, em obras mencionadas, tais como a Medéia, que pode ser a peça teatral ou o filme, e a animação Procurando Nemo).
               A unidade pode ser sensivelmente identificada da seguinte maneira: primeiramente, algumas mulheres anônimas relatam fatos de sua vida (tendo sido filmadas em junho de 2006), e as atrizes profissionais (filmadas em setembro de 2006) interpretam algumas anônimas, relatando às vezes os mesmos fatos e, outras vezes, fatos inéditos, provocando certa confusão no espectador sobre se está sendo imitado um relato não mostrado ou se a história pertence mesmo à atriz profissional que o conta. Desta feita: histórias são contadas e posteriormente retomadas por uma reprodução fidedigna feita pela atriz profissional; é contada uma mesma história alternadamente, parte pela anônima, parte pela profissional; discursos são entrelaçados, dialogando uma personagem com outra pelas similaridades de suas experiências etc. O efeito “liquidificador” que Coutinho nos propõe é o que justamente irá aglutinar todos os relatos, sejam falsos ou verdadeiros, em um mesmo conglomerado que, além de convergir rumo a um mesmo sentido, causa em nós o impacto de veracidade geral, que torna sem importância sabermos se houve representação ou se o relato foi verdadeiro e sincero. Daí o “jogo de cena”.
               Pode-se dizer então que o primeiro – e, talvez, o precípuo – fator a requerer grande atenção nesta fantástica obra é o uso inteligentíssimo e dinâmico da montagem, o elemento de linguagem que aqui se sobressai. Aliás, a montagem não só neste filme é elemento de destaque, já que no cinema, como um todo, é com freqüência importante de uma tal maneira, que confunde-se com o fazer cinema em si; pode-se dizer que uma boa montagem é capaz de fazer um bom filme. Por isso este elemento fascinou tantos teóricos e cineastas de todo o planeta ao longo do séc. XX.
               Vsevolod Pudovkin, cineasta russo, citado por Christian Metz, afirmou:
A noção de montagem, além de todos os sentidos particulares que lhe são às vezes atribuídos (colar planos após planos, montagem acelerada, princípio meramente rítmico etc) é em verdade o essencial da criação fílmica: o ‘plano’ isolado não é senão um pedacinho de cinema; não é senão a matéria-prima, fotografia do mundo real. Só se passa da fotografia ao cinema, do decalque à arte, pela montagem. Com tão ampla definição, ela se confunde simplesmente com a própria composição da obra.
               Na obra de Coutinho, há uma planificação que fornece continuidade no conteúdo com moldes formais de descontinuidade, a partir do que o cineasta constrói a articulação psicológica de seu texto. É uma espécie de quebra-cabeça que, apriorísticamente, parece com efeito reunir peças que não se encaixam, mas que, no desenrolar da trama, vão delineando o contorno desejado pelo realizador.
               Na mesma linha de raciocínio está o capítulo 02 do excelente livro Compreender o Cinema e as Imagens, de organização de René Gardies, de cujo bojo se pode extrair o seguinte:

A primeira função da montagem é fornecer um suplemento de sentido às imagens, cujo mero conteúdo não poderia dar esse sentido. A associação dos planos permite ligar situações, reunir ou separar elementos, articular numa determinada continuidade aquilo que, sem esta operação de montagem, seria visto apenas como isolado (...). 
               Esta continuidade é conferida ao filme pela criação consciente de todas as espécies de elos que a montagem é capaz de gerar (narrativos, sensíveis, temporais e de conteúdo). Destaca-se aqui os elos de conteúdo, uma vez que Coutinho soube explorar muito bem os modos de enlace dos discursos e raciocínios das personagens. Aliás, estes discursos e raciocínios são comuns não somente às personagens, mas ao povo brasileiro em geral; podem ser compreendidos como uma pequena amostragem dos costumes e da cultura brasileira, bem como das formas de expressão. Este método de lógica indutiva é recorrente em se tratando de Eduardo Coutinho (vide, por exemplo, Edifício Master, de 2002). São expostos temas (ou problemas) que comumente assolam brasileiros, como o advento de uma gravidez precoce e não-planejada, exclusão social por fatores discriminatórios (que em certos casos conduzem os marginalizados à tentativas – na maior parte das vezes frustradas – de seguir os padrões impostos); e encontramos também temas mais “globais”, como a religiosidade, a relação do indivíduo com a perspectiva da morte, a relação deste com a obra de arte segundo suas próprias experiências, relações entre pais e filhos, entre outros.
               Os nomes das personagens não são mostrados. Não para mantê-las no anonimato – até porque as três atrizes profissionais são muito famosas – mas para tornar todas indistintas, opondo-se desta forma a outras formas de entrevista, como as de caráter jornalístico.
               Não há música. A atmosfera é seca, o que induz dois efeitos básicos: o espectador volta sua atenção para o lado discursivo-ideológico, desviando-a de ações que compreende estarem no contracampo; aumenta a pancada emotiva dos relatos, pois não há trilha sonora que nos embale e console do que estamos ouvindo. Além disso, o cenário é único: a entrevistada sentada em uma cadeira no palco, diante do diretor e dos cinegrafistas (que não aparecem), e de costas para as cadeiras vazias do teatro. Sobre isto, enalteço o belo comentário do crítico Carlos Alberto Mattos, que assim se pronunciou: “a plateia vazia representa o espírito da representação; trata-se de uma situação-teatro, e não de teatro em si”.
               É preciso ressaltar ainda o impressionante caráter antropológico que Coutinho empresta à sua película.
                Estamos diante, todo o tempo, de um filme sobre “o outro”. Verdadeiro exercício de alteridade, o importante aqui é buscar entender e aceitar o outro em suas diferenças e dramas pessoais, e saber que, se não passamos por nada daquilo, podemos um dia vir a passar, ou conhecer alguém que venha a passar, de modo a nos tornarmos afetados como as atrizes em sua tentativa – dificílima – de representar as mulheres anônimas. Se algo foi inventado, tornou-se verdade em sua mistura às primevas verdades, e em sua capacidade de emocionar o emissor da mensagem (que poderia ser qualquer um de nós) e o interlocutor (diretor, os demais envolvidos na produção do filme e, efetivamente, nós).
                Finalizo mencionando a frase proferida por Marília Pêra em sua entrevista que, além de ser um verdadeiro protocolo institucional do ofício do ator, perfaz-se elucidativa para uma das principais propostas de Eduardo Coutinho, a de mostrar os desafios de representar: “Quando o choro é verdadeiro, a pessoa sempre tenta esconder as lágrimas. O ator, principalmente o contemporâneo, propositalmente mostra”. Marília é uma atriz contemporânea, mas não precisou de um cristal japonês para lacrimejar. E olha que tentou esconder as lágrimas.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

"Festim Diabólico" (1948), de Alfred Hitchcock




Considerado um filme do início da fase madura de Alfred Hitchcock – aquela em que já definira seu estilo – “Festim Diabólico” serviu para consolidá-lo ainda mais no rol dos maiores cineastas de todos os tempos.

Este filme de 1948, roteirizado por Arthur Laurents, baseou-se numa peça teatral de Patrick Hamilton que, por sua vez, inspirou-se na história real de Leopold e Loeb. Ainda que a história não tenha sido concebida por Hitchcock, este soube dar a ela, graças à sua genialidade habitual, uma dimensão autêntica, peculiarmente magistral.

Cuida-se do caso de Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger) que, pelo prazer de uma macabra experimentação e pela excitação do perigo da descoberta decidem, com muita torpeza, assassinar David (Dick Hogan), um jovem estudante de Harvard conhecido deles.

Estrangulam-no com uma corda e colocam-no num baú – que lembra um caixão – no dia em que uma festa seria realizada no apartamento em questão. Protagonistas de um sadismo desmedido, com destaque para Brandon (o idealizador do crime), jantam com amigos, familiares e uma ex-namorada do morto – fazendo do baú, inclusive, a mesa principal da ceia – enquanto David ali jaz.

O filme sofre uma grande virada com a chegada de Rupert Cadell, ex-diretor da escola em que Brandon e Phillip estudaram, interpretado pelo astro James Stewart. Ele passa a notar certas atitudes suspeitas na conduta dos assassinos, o que o leva a desconfiar que há algo errado. Passa a inquiri-los quando tem oportunidade e, como um detetive, começa a descobrir tudo lentamente, embora se recuse a acreditar na repulsiva verdade.

A festa termina, os convidados vão embora. Brandon e Phillip respiram aliviados e já confabulam sobre o lago em que pretendem atirar o corpo da vítima, Porém, Rupert retorna para buscar sua cigarreira, que supostamente esquecera; o que realmente quer é fazer as perguntas cruciais.

Impressiona neste filme o fato de ter sido inteiramente rodado em plano-sequência, isto é, a ação era contínua. As tomadas tinham cada qual 10 minutos, mas era e continua sendo imperceptível, para o público médio, a passagem de uma para outra. A intenção era criar uma atmosfera teatral, equiparando o filme à peça inglesa “Rope’s End”, de Patrick Hamilton.

A única cena externa é um plano geral filmado da altura do andar em que o apartamento se encontra, onde a câmera, fixa em seu eixo, captura obliquamente a passagem de alguns transeuntes pela calçada, enquanto sobem os créditos. Um destes transeuntes é o próprio Hitchcock, inclusive.

Outro aspecto a se ressaltar é a fotografia. Primeiro filme de Hitchcock feito em technicolor, através da Direção de Fotografia de Joseph Valentine – aliás, muito conveniente à proposta do cineasta – conta, além da cor, com ilimunação, figurino e cenários que não poderiam ser diferentes, senão vejamos:

A iluminação é brilhante, porquanto em segundo plano, através de uma larga janela, se vê a cidade de Nova Iorque (que era, na verdade, um enorme ciclorama com nuvens de fios de vidro e miniaturas da cidade, iluminado por 2.000 lâmpadas incandescentes e 200 letreiros luminosos). Contudo, é bem realista, uma vez que as nuvens se movem, vê-se sair fumaça de chaminés e, gradativamente, o sol vai se pondo e as luzes da cidade vão se acendendo.

O cenário é cubista (toda a ação se desenrola no interior do apartamento), provocando assim uma tensão mais forte para o espectador, que não tem muito com o que se distrair. Isto viabilizou que Hitchcock desse um show de criatividade, no sentido da criação do suspense, através de diversos movimentos inteligentes de câmera.
O figurino é modesto – observados, é claro, os costumes e padrões da época e do lugar – mas o de Rupert (Stewart) certamente tem algo de distintivo perante os demais; isto quer significar o fato inequívoco de que tal personagem ocupa posição de destaque no thriller.

A película foi rodada no estúdio que o próprio Hitchcock montara – a Companhia Transatlantic Pictures – cujo co-proprietário era Sidney Bernstein, que posteriormente produziu alguns filmes do mestre. A música é de Bernard Hermann (vide os momentos em que Phillip toca piano), que também trabalhou com Hitchcock em muitos de seus filmes.

Para finalizar, é de bom alvitre deixar uma certa discussão no ar, da mesma forma que foi feito à época: a questão da homossexualidade de Brandon e Phillip.

Isto não é comprovado, e nem há qualquer menção a respeito durante todo o transcorrer da narrativa. Mas há quem note este teor, e vale lembrar que o argumento é uma adaptação da peça teatral inglesa, que continha inúmeras passagens que, quando acomodadas ao inglês americano tomavam feições, digamos, um tanto sugestivas. Como os EUA, entretanto, eram uma nação ainda muito preconceituosa e hipócrita – ainda o são, em certa medida –, não permitiriam de forma alguma uma homossexualidade explícita, e por isso muitos cortes no texto foram feitos por Arthur Laurents. Há quem sugira até mesmo que Brandon tivera anos antes um caso com Rupert. Em todo caso, são especulações que, aparentemente, nunca encontrarão uma resposta concreta e definitiva.

Este filme é um marco da carreira do mestre do suspense Alfred Hitchcock e da história do cinema mundial. É esplendoroso e deve ser visto.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

"Rango" (2011), de Gore Verbinski




A recente animação Rango ultrapassa as expectativas de muitos, que esperavam ver um filme simples, sem surpresas e sem um propósito último que abrigasse uma importante crítica a algo ou alguém. Ao contrário do que muitos esperavam, foi sucesso de crítica no mundo, e tem chances até mesmo de concorrer ao Oscar 2012 de melhor longa de animação.


O filme é uma espécie de faroeste moderno, já influenciado pelas concepções filosóficas e artísticas do existencialismo e do antieroísmo. Trata-se da história de um lagarto de estimação (Rango) que vive em uma espécie de redoma de vidro e que, após perder-se de seus donos num infeliz quase-acidente na estrada, acaba por ver-se sozinho em meio a um deserto no México. Rango passa então a peregrinar pelas áridas pradarias, até chegar à cidade de Poeira, onde só há outros animais, estes vivendo e agindo tal qual seres humanos. Lá, muitas aventuras acontecem.

Assinada pelo mesmo diretor de Piratas do Caribe – Gore Verbinski –, a fita decididamente não é para crianças. É absurdamente inteligente, vez que possui um roteiro muito bem elaborado, com diálogos profundos e às vezes um pouco rebuscados, que podem vir a causar certo atraso de compreensão pelo público médio e, principalmente, pelo público infantil. Acontece o que é muito comum: o público irá se irritar com os diálogos, pois esperava vê-los diluídos em linguagem acessível, e entenderá o filme apelas pelo contexto geral, já que sua linearidade – que não foge aos padrões estadunidenses – permite isso. Dirão que o filme é chato e que já viram muitos melhores. As crianças reclamarão que é de difícil compreensão.

Contudo, basta manter a atenção e a concentração, pois este filme não é um bicho de sete cabeças. Apenas é que poder-se-ia dizer, para utilizar a expressão alcunhada por Umberto Eco, que estamos diante de um filme “apocalíptico”.

Há realmente um diferencial em relação a muitas outras animações. Vi o trailer de “Rio”, o novo projeto de animação de Carlos Saldanha (da trilogia “A Era do Gelo”), e a impressão que tive é que é notório o quanto segue certos padrões, sem nos apresentar algo novo, a não ser aquilo que já se espera das animações regulares.

Rango é um filme que traz importantes críticas para a sociedade contemporânea de diversas maneiras. Por um lado, critica o consumo desenfreado e irracional de água, cuja escassez crescente pode se tornar o maior problema crônico do futuro. As pessoas sabem muito bem que sem comida e/ou sem água ficam embrutecidas, e que o frio instinto de sobrevivência individual prevalece, não havendo mais lugar para sentimentos calorosos como o amor ao próximo. E ainda assim ninguém se preocupa em racionar, ou utilizar este recurso natural de maneira sustentável para garantir às próximas gerações a desnecessidade de uma 3ª Guerra Mundial ocasionada pela falta de água. A apropriação exagerada do recurso por uns enquanto falta para outros é flagrante quando se percebe o modo de vida dos cidadãos de Poeira. Todos vivem em função da água e, enquanto não conseguem seu quinhão, nada mais importa.

Outra importante crítica que este filme faz é sobre o falso heroísmo social. Seja em larga escala, como a de presidir uma nação ou a ONU, ou em escala mais restrita, isto é, em círculos sociais ou grupos, há sempre alguém que se destaca pelo carisma ou pela vocação para liderança. Há entre estes, porém, muitos que querem apenas aproveitar-se do poder para benefícios pessoais; mas quando se vêem ameaçados, não sabem como reagir.

Rango queria ser respeitado na cidade, pois temia ser considerado fraco e vulnerável pelos demais habitantes devido à sua aparência mais nobre, que contrastava com a maltrapilha e sofrida dos demais. Passa então a contar vantagens, inventar mentiras sobre proezas suas que na verdade nunca existiram. Torna-se então um grande líder da cidade, que condecoram xerife. Com o tempo, vindo a verdade à tona, ele precisa se redimir com a cidade – e consigo mesmo.

Neste ponto o filme sofre certa virada, onde o protagonista passa a tentar compreender o sentido de sua própria existência através de uma longa caminhada, onde conversa com o “espírito do oeste”, figura já muitas vezes retratada em outros contos faroestes.

Ao assistir este filme, me veio à cabeça os dois primeiros versos do poema de Manuel Bandeira: “Vou-me embora para Pasárgada, lá sou amigo do rei”. Rango não é amigo do rei; torna-se o próprio “rei”. Mas talvez não estivesse preparado para as responsabilidades correlatas. Há aqui um caráter existencialista escancarado, pois o espírito do oeste aconselha Rango a que procure seu próprio caminho, e que não fuja daquilo que precisa fazer, o que decerto põe num alto patamar a existência – ainda que desagradável – como condição humana (cuja única fuga possível é o suicídio), mas que deve prioritariamente ser suportada e conduzida de acordo com o que é dado a cada um.

E falando em existencialismo, me lembrei também daquela frase de Sartre: “Nunca se é homem enquanto se não encontra alguma coisa pela qual se estaria disposto a morrer.” É por isso que Rango resolve retornar a Poeira – pois fugira com medo do maior vilão da cidade (o Jake Cascavel) –, para enfrentá-lo custasse o que custasse – até mesmo sua vida.

Vale a pena conferir esta animação elogiadíssima, cujo dublador de Rango é ninguém menos que Johnny Depp.

quinta-feira, 17 de março de 2011

"Eraserhead" (1977), de David Lynch




“Eraserhead” (1977) é o primeiro filme de David Lynch. Em geral, o que vem à tona em nossa mente, ao pensarmos nisso, é que o filme não representa o melhor do diretor que o concebeu, este ainda pendente do alcance de sua plenitude, o que acontecerá apenas anos mais tarde, dotado que estará de maior experiência. Porém, sucede aqui precisamente o contrário. Neste filme, Lynch utiliza diversos recursos que se tornariam recorrentes ao longo de toda a sua obra, demonstrando que já dispunha de todo o gás necessário a um bom realizador, de modo que muitos consideram este seu melhor filme; é a opinião, por exemplo, de Stanley Kubrick e Mel Brooks, só para citar dois ícones do cinema moderno.


Observe a expressão de um espectador de “Eraserhead” e constatará o ponto de interrogação personificado, o espanto, a surpresa, a dúvida. Esse foi mesmo o efeito que quis causar o diretor David Lynch (“Duna”, “Veludo Azul”, “O Homem Elefante” e outros).

Na filmografia lynchiana, segundo a ótica do cinema de autor, é amplamente perceptível o modo fantástico como o diretor frequentemente “brinca” com o sincretismo entre o real e o irreal. “Duna” (1984) é uma ousada ficção científica que ilustra bem esta afirmação. Em “História Real” (1999), o diretor narra a viagem que um homem muito idoso empreende em um cortador de grama através de uma longa estrada, para visitar seu irmão moribundo. Ao mesmo tempo em que não cessamos de considerar uma viagem daquela proporção, em um meio de transporte pequeno, lento e vulnerável, um absurdo do ponto de vista lógico-racional, nos tornamos cúmplices do protagonista, a todo instante na torcida para que este chegue a seu destino. O que nos faz acreditar nesta possibilidade, se nós mesmos jamais acreditaríamos caso o episódio se desse em nossa realidade tangível com, por exemplo, algum parente? É justamente a irrealidade em sua fusão com a realidade, num conjunto imagético indissociável.

A dicotomia irrealismo-realismo é a característica precípua de “Eraserhead”. É brilhante o modo que o então jovem David Lynch a expõe, causando-nos um fator afetivo-participativo perturbador e, ao mesmo tempo, interessado. Torna-se despiciendo, contudo, citar cena por cena da fita, até porque é preferível resguardar a surpresa do espectador.

Considerado pela maioria dos fãs de Lynch seu filme mais enigmático, aparentemente não há ainda um argumento plausível para contestar tal opinião. O próprio cineasta o definiu como “um sonho sobre coisas sombrias e inquietantes”. Apenas escapa da afirmação categórica de ser o mais misterioso de Lynch por haver dissidentes que acreditam, por exemplo, que “A Estrada Perdida” (1997) vence-o. Em todo caso, este sonho – ou pesadelo – possui diversas passagens propositalmente inexplicáveis, de modo a gerar uma infinidade de interpretações, que nunca chegarão de fato a uma resposta concreta.

Realizado em 1977, após 05 conturbados anos de filmagens e edições intermitentes – pois não havia dinheiro suficiente, e nem apoio dos donos do estúdio onde foi rodado –, este foi o primeiro filme de Lynch, feito quando este somava 31 anos de idade.

O roteiro, do próprio Lynch, conta a estória de Henry Spencer (Jack Nance), um homem solitário e esquizofrênico, que vive num pequeno quarto suburbano, num cenário pós-industrial visivelmente devastado e abandonado. Henry namora com Mary (Charlotte Stewart), uma graciosa garota loira que pertence a uma família de excêntricos. Certa vez, deixa um recado com a vizinha de Henry, para que esta o informe sobre um convite de jantar em sua casa, onde pretende apresentá-lo à família. Na oportunidade, estranhíssimos acontecimentos são inadvertidamente mostrados, chocando-nos: a avó que, nota-se, passa dias inteiros sentada numa cadeira sem mover um músculo; o pai, um encanador com deficiência nos joelhos por ter sido o responsável pela instalação de toda a tubulação da região, além de rir sem motivo algum e ser indiferente a tudo; a mãe, que tenta seduzir Henry; a galinha que Henry, ao espetar com o garfo, libera sangue e começa a mexer-se; e a informação de que Mary está grávida dele.

Infelizmente a tomada que mostra o bebê saindo da maternidade – e a enfermeira responsável pelo parto – por sinal com forte carga surrealista, foi uma de várias deletadas, e Lynch lamenta ter perdido este fragmento.

Há então um corte seco diretamente para a sequência do quarto de Henry, onde Mary passa também a residir com o bebê-monstro. Os choros incessantes deste, porém, atormentam-na profundamente, e esta volta à casa dos pais, deixando Henry a sós com o filho, na responsabilidade de cuidar sozinho do mesmo. Seus instintos esquizofrênicos, contudo, vão aflorando, de modo que torna-se negligente quanto aos cuidados necessários com o bebê, e este adoece.

O onirismo então entra em cena sem pedir licença. Henry vislumbra, em uma espécie de delírio, uma cantora no interior do aquecedor de seu quarto. Não é uma cantora comum, porém; possui bochechas enormes e caídas (maquiagem que inspirou a do Homem Elefante, alguns anos depois), e canta uma canção sobre tudo estar bem no céu. Outra vez, enquanto dorme, sonha que chega ao palco onde a estranha mulher canta, e um adubo com plantas (idêntico ao que cultiva na mesa de cabeceira de seu quarto, porém maior) está presente; os galhos decepam-lhe a cabeça, surgindo no lugar uma similar à do bebê monstruoso; a cabeça, por sua vez, ao atingir o chão, é absorvida por uma poça d’água, e cai na rua das imediações domiciliares de Henry; é então levada por um garoto a uma fábrica de borracha, para ser usada como matéria-prima para a fabricação de borracha para lápis, e daí o título “Eraserhead” (cabeça de borracha). O que David Lynch queria dizer com tudo isso? Só ele sabe. Múltiplas interpretações são bem-vindas. Mas, um detalhe: Lynch diz que até hoje, após ouvir inúmeros palpites da crítica e do público, ainda não identificou um que se aproxime com a interpretação dele próprio... Trata-se de um filme bem pessoal.

Outrossim, alguns aspectos curiosos devem ser mencionados. O bebê monstruoso, fruto de uma relação sexual – apenas insinuada – entre Henry e Mary, mais parece com um filhote deformado de bezerro, ou uma representação de alienígena; é tão estranho, que muitas outras comparações poderiam ainda ser feitas. E o mais incrível é que ninguém nunca soube como foi criado, nem mesmo aqueles que trabalharam na produção do filme: é um segredo que Lynch até hoje guarda a sete chaves.

O roteiro do filme possuía 21 páginas. Como não raro o número de minutos de duração da película correspondia ao número de páginas do roteiro – uma coincidência curiosa – Lynch foi questionado sobre se seu filme teria 21 minutos de duração. Respondeu que teria um pouco mais. Assim, foi novamente questionado: “42 minutos então?”. O cineasta nada respondeu. Ao finalizar a fita, esta contava com mais de 2 horas. Após uma edição mais rígida, na qual diversas cenas foram excluídas, a versão final ficou com 1 hora e 29 minutos, duração considerada padrão para um longa-metragem. Como Lynch conseguiu estender a tanto um filme cujo roteiro possuía apenas 21 páginas? Simples. Através da técnica slow-motion, que desacelera os acontecimentos, cadenciando-os sob um ritmo lento e impondo acontecimentos quase que em tempo real. Genial.

O enredo sugere uma não-linearidade pelos diversos devaneios em que a narrativa incorre. Ilusão. A narrativa tem um tronco central que lhe confere sentido, e a linearidade pode ser encontrada. Uma vez identificada, entende-se o percurso da estória.

Por derradeiro, anuncio aos interessados em adquirir a cópia em DVD lançada no Brasil pela Lume Filmes que poderão conferir nos Extras uma esplêndida entrevista com o realizador, esta de 1 hora e 25 minutos de duração, onde ele explica todas as dificuldades para a conclusão deste filme, como por exemplo: demorou 5 anos para ser finalizado, dentre cujas implicações o ator Jack Nance foi obrigado a manter as compridas madeixas “para cima”; Lynch fez de uma espécie de estábulo existente no estúdio seu escritório pessoal; o quarto de Henry (personagem de Jack Nance) era verdadeiramente onde o diretor dormia etc.

Eis um belíssimo programa para quando as sufocantes atividades do dia-a-dia derem uma trégua. Mas não sem prévias 24 horas de preparação psicológica.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"O Salário do Medo", de Henri-Georges Clouzot (1953)



É costume geral das nações atribuir ao cineasta Alfred Hitchcock o título de mestre do suspense. Porém, outros realizadores há que, mesmo sem o renome de Hitchcock, criaram obras-primas do (ou com) suspense. É o caso do francês Henri-Georges Clouzot.


Nascido em Niort, França, em 1907, Clouzot teve uma vida conturbada. Iniciou sua carreira como escritor por volta de 1925, momento em que mudou-se para Paris e passou também a estudar ciência política. Seus escritos chamaram a atenção de empresários alemães do meio cinematográfico, e Clouzot foi contratado para traduzir filmes alemães para o francês. Sua amizade com judeus, contudo, rendeu-lhe a demissão, quando então retornou ao seu país de origem. Após alguns anos, em plena França ocupada pelos nazistas, tornou-se roteirista da Continental Filmes alemã, com a qual também veio a ter problemas. Sua vida piorou ainda mais quando descoberta a relação que possuíra com este estúdio, o que ocasionou uma proibição para filmar, do governo francês, até 1947. Isto não impediu que o beligerante cineasta filmasse clandestinamente, até mesmo durante a ocupação alemã na 2ª Guerra Mundial. Seu reconhecimento só veio alguns anos mais tarde, com a realização de novos filmes que geraram orgulho à nação francesa – dentre eles “O Salário do Medo” – e garantiram o retorno de sua popularidade.

Por ter vivenciado a guerra, isso exerceu forte influência em sua filmografia, onde tornou-se recorrente a construção de personagens rudes e embrutecidos pela vida e a exploração de problemáticas políticas e sociais.

Ambientado na América do Sul, e baseado no romance homônimo de Georges Arnaud, “O Salário do Medo” é um de seus filmes mais realistas. A miséria, a dureza da vida e o abandono governamental são apenas alguns dos elementos que caracterizam o povoado de Las Piedras – sob enfoque nas primeiras cenas –, situado na Guatemala; paupérrimo, aparenta haver sido esquecido pelo mundo. O efeito disso não passa ao largo da captura de Clouzot, que logo de cara põe o espectador diante de homens sobressaltados, desconfiados e agressivos, sem coisa alguma a perder. Trata-se de um irrepreensível retrato sociológico, que reforça a tese de alguns de que o homem, quanto mais perto do estado de natureza, isto é, mais distante de elementos civilizatórios coercitivos (ou regras) e com menos recursos para uma vida digna, mais tende a um agressivo egoísmo e a uma autodefesa ininterrupta, própria do instinto de preservação da espécie. Dentre eles está Mario (Yves Montand, em um papel diferente do seu costumeiro), o protagonista da fita em questão.

A vida vai seguindo desta maneira, até a chegada de Jo (Charles Vanel), que parara ali por acaso.

O recém-chegado logo identifica-se e trava amizade com Mario, pois eram ambos franceses. De se ressaltar a construção destes personagens, notadamente Jo, um homem que demonstra total ausência de medo, e que acabamos por associar a uma bravura que normalmente só encontramos no gênero western. Com o desenrolar da película, porém, Clouzot o desconstrói; aprendemos então que muitos homens são superficiais, e aquilo que julgamos ser sua personalidade é apenas uma “capa”, que esconde um ser humano totalmente diferente; demonstra ainda que, aqueles que confrontados pela primeira vez com um sentimento novo, provavelmente terão dificuldades para lidar com ele, e irão desmontar. Aqui, o sentimento é o medo.

Pois bem. É anunciado um incêndio em uma refinaria de petróleo da Southern Oil Company (SOC), a algumas centenas de quilômetros dali. A empresa americana possuía um representante da mesma nacionalidade chamado Bill O’Brien (William Tubbs). Após uma reunião de O’Brien com outros empresários da SOC, chega-se à conclusão de que a única maneira de solucionar o infortúnio é através do uso de 200 galões de nitroglicerina (para explodir o oleoduto causador do incêndio e, assim, apagar o fogo), os quais deveriam ser transportados por 2 caminhões até o local, cada qual com 2 passageiros, enfrentando-se uma estrada tortuosa pelas montanhas, e repleta de obstáculos. Àqueles que cumprissem tal missão estava reservada a recompensa de 4 mil dólares.

Daí em diante, o filme toma um outro rumo. Ao contrário da vida de bares, bebida e (pelo menos aparente) tranqüilidade do povoado, agora a aventura aparece. Muito louvável a criatividade do diretor quanto aos empecilhos que surgem aos viajantes; estes, diga-se de passagem, praticamente suicidas.

Além de tudo que já foi exposto, há ainda duas características deste filme a serem destacadas.

Em primeiro lugar, é feita uma crítica aos maus efeitos do capitalismo, inexorável na formação das desigualdades. O clima de subdesenvolvimento é perturbador. A própria sequência inicial já denota este caráter, quando enquadra uma criança brincando com um inseto numa poça de lama.

A segunda evidente característica é o cunho existencialista que permeia todo o desenrolar da narrativa. Se a teoria sartriana pregou a liberdade e a individualidade do ser humano, além de uma responsabilidade pessoal pelos seus atos, podemos ver isto como algo flagrante na narrativa, onde homens estranhados viajam juntos, mais agem do que comunicam-se, e apenas cooperam quando isto é indispensável; cada qual visando a recompensa prometida a quem cumprisse a missão-desafio, pois o dinheiro era a única maneira de pagar uma passagem de avião e ir embora dali, e ainda sobraria bastante. Deflagra-se o existir pelo existir, sem qualquer preocupação com a essência, e sim tão-somente com a busca por um “existir melhor”.

O filme ganhou o BAFTA de Melhor Filme, o Urso de Ouro no Festival de Berlim e o Grand Prix no Festival de Cannes como Melhor Filme e Melhor Ator para Charles Vanel.
Ao final, ficam os seguintes questionamentos: Até que ponto irá a dominação do homem sobre o homem? Será possível que o medo tenha um preço? Quem continuará pagando o salário do medo?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"Stroszek", de Werner Herzog (1977)



Estar agarrado a modos de filmar pré-concebidos, utilizar recursos cinematográficos corriqueiros e não inovar certamente fogem ao que se conhece pela filmografia do cineasta alemão Werner Herzog. Podemos vislumbrar em sua obra uma verdadeira personificação da iconoclastia.

É componente da tríade dos principais cineastas do cinema novo alemão – da qual também fazem parte Rainer Werner Fassbinder e Win Wenders –, diretores cujo legado foi revolucionar o que se fazia em termos de cinema na Alemanha até então. A fusão do neo-realismo italiano dos anos 40 e da vontade, trazida pela nouvelle vague francesa dos anos 60, de romper com as regras postas, foi a fonte na qual os revolucionários realizadores alemães beberam a partir da década de 60 (porém, com mais a força a partir de 70), para recriar o cinema alemão ao seu modo, sob um novo ponto de vista.

Nesta parábola, sobre um músico de rua, uma prostituta e um velho excêntrico, todos alemães, que viajam juntos aos EUA em busca de uma vida nova, cospe-se realidade na encenação fictícia – apesar da aparente contradição. É insuportavelmente real ver cidadãos alemães deixarem sua terra natal e partirem para a terra dos sonhos que supostamente se tornam realidade, a terra onde tudo parecia possível: a América. É que o movimento migratório de fato ocorreu, pela ideia que toda a humanidade possui, sobretudo a Europa, de que os EUA são a nação das oportunidades; infelizmente, este engano perdura até os dias atuais. O que ocorre é que esbarram na visceral e inexorável indiferença, na falta de oportunidades reais de fazer fortuna, ou mesmo num anonimato esmagador, quase impossível de superar.

O humor à la Tchékhov se faz presente em muitos momentos da película. É uma cômica tristeza, caracterizada por fazer o espectador abrir um terno sorriso no canto dos lábios enquanto, simultaneamente, sente pena, compaixão. São exemplo as sequências em que o banqueiro, um homem artificialmente educado e excessivamente polido tenta explicar-lhes em inglês que seus bens seriam leiloados para pagamento das dívidas caso não o efetuassem num certo prazo, e não é bem entendido pelos alemães, mesmo com a tradução de Eva. Bruno chega a ignorá-lo. Alguns dias depois, o televisor é levado, e Bruno permanece indiferente. Até que, após uma última conversa – em que, na realidade, não há comunicabilidade, pois Eva já fora embora e Bruno e o banqueiro não conseguem fazer-se compreender – é leiloado o trailer.

Com o tempo, vai se evidenciando crescentemente a falta de semelhanças entre os personagens. Esta disparidade de pessoas que, contudo, convivem sob o mesmo teto (em um trailer!), é cômica; mas por outro lado, chega a ser perturbadora: com quem desabafar em um momento de agonia? A atmosfera é profícua para o desenvolvimento de uma solidão sistêmica, que atingiria a cada um – ainda que disfarçadamente –, influenciando todo o grupo, mas prejudicando substancialmente Bruno.

Vale consignar ainda que Bruno S., já imortalizado pelo “Enigma de Kaspar Hauser” (1974), do mesmo diretor, está novamente convincente no papel homônimo: o de Bruno Stroszek; a única diferença é o “S” do Bruno real, abreviatura de Schleinstein. Aliás, curiosamente, todos os personagens deste filme – cujo roteiro foi escrito em apenas 04 dias! – possuem o nome ficcional igual ao nome real; assim, a prostituta Eva chama-se Eva Mattes e o ancião Scheitz foi batizado Clemens Scheitz. Como se não bastasse, Bruno, assim como o personagem, também possuía um atraso intelectual e era músico de rua.

Doses cavalares de realismo? Sim. E Pode-se falar também em doses cavalares de melancolia, pois o realizador alemão criou uma parábola de nuances balzaquianas sobre a perda de ilusões, e enfeitou-a magnificamente com geniais tomadas em campos amplos, feitas em planos gerais, além da fotografia belíssima de Stefano Guidi, Wolfgang Knigge, Edward Lachman eThomas Mauch, equiparável a paisagens pintadas em telas.

Outro paralelo interessante que se pode fazer é entre Stroszek e a morte de Ian Curtis, vocalista da banda pós-punk inglesa Joy Division, sobre quem há inclusive o filme biográfico “Control” (2007), de Anton Corbijn. É no mínimo interessante saber o que segue: ambos eram músicos e tristes; Stroszek foi esmagado pela vida rápida, fria e individualista da América e Curtis suicidou-se às vésperas de uma viagem para a América com a banda; e este foi o último filme assistido por Curtis antes de sua morte. As semelhanças não poderiam passar despercebidas. É por isso que, no filme “Control”, há uma sequência em que claramente Curtis está assistindo a Stroszek na TV, no exato momento em que o trailer em que Bruno morava é leiloado pelo banco em virtude de dívidas não pagas.

Por falar em vida esmagadora, além do leilão do trailer, Eva revela-se uma oportunista ingrata – pois um dos motivos da retirada do trio da Alemanha foi a violência com que dois agenciadores de prostituição se portavam para com ela – a ir embora para Vancouver com uma dupla de caminhoneiros, entediada que já estava da vida ao lado de Bruno. E o arremate final se dá com a prisão de Scheitz após um inexperiente assalto que pratica com Bruno à uma mercearia, de cuja captura este último escapa milagrosamente.

Eva representa não só a ingratidão, mas o egoísmo, a sujeira do mundo. Aproveitando o ensejo, pode-se então dizer que o pretenso cientista Scheitz, um aficcionado por magnetismo animal e invenções inúteis, que apenas pensa vaidosamente em si enquanto é cego em relação ao mundo ao seu redor, faz as vezes da loucura e da indiferença.

A crueldade da vida já fora demasiadamente mordaz para Bruno, indivíduo outrora ingênuo e doce, e o ponto de ebulição de sua revolta para com o mundo se dá na sequência final, que é uma alegoria da condição humana, isto é, de histeria e desespero, obsessão e perda de controle.

Ora, a função precípua do filme de arte é fornecer uma rica complexidade semiótica, onde tudo possui uma causa última, e os acontecimentos aparentemente mais superficiais tem um fundo de crítica ou de caricatura. A quem interessar, deixo o recado: isto não falta em Stroszek.