quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"Stroszek", de Werner Herzog (1977)



Estar agarrado a modos de filmar pré-concebidos, utilizar recursos cinematográficos corriqueiros e não inovar certamente fogem ao que se conhece pela filmografia do cineasta alemão Werner Herzog. Podemos vislumbrar em sua obra uma verdadeira personificação da iconoclastia.

É componente da tríade dos principais cineastas do cinema novo alemão – da qual também fazem parte Rainer Werner Fassbinder e Win Wenders –, diretores cujo legado foi revolucionar o que se fazia em termos de cinema na Alemanha até então. A fusão do neo-realismo italiano dos anos 40 e da vontade, trazida pela nouvelle vague francesa dos anos 60, de romper com as regras postas, foi a fonte na qual os revolucionários realizadores alemães beberam a partir da década de 60 (porém, com mais a força a partir de 70), para recriar o cinema alemão ao seu modo, sob um novo ponto de vista.

Nesta parábola, sobre um músico de rua, uma prostituta e um velho excêntrico, todos alemães, que viajam juntos aos EUA em busca de uma vida nova, cospe-se realidade na encenação fictícia – apesar da aparente contradição. É insuportavelmente real ver cidadãos alemães deixarem sua terra natal e partirem para a terra dos sonhos que supostamente se tornam realidade, a terra onde tudo parecia possível: a América. É que o movimento migratório de fato ocorreu, pela ideia que toda a humanidade possui, sobretudo a Europa, de que os EUA são a nação das oportunidades; infelizmente, este engano perdura até os dias atuais. O que ocorre é que esbarram na visceral e inexorável indiferença, na falta de oportunidades reais de fazer fortuna, ou mesmo num anonimato esmagador, quase impossível de superar.

O humor à la Tchékhov se faz presente em muitos momentos da película. É uma cômica tristeza, caracterizada por fazer o espectador abrir um terno sorriso no canto dos lábios enquanto, simultaneamente, sente pena, compaixão. São exemplo as sequências em que o banqueiro, um homem artificialmente educado e excessivamente polido tenta explicar-lhes em inglês que seus bens seriam leiloados para pagamento das dívidas caso não o efetuassem num certo prazo, e não é bem entendido pelos alemães, mesmo com a tradução de Eva. Bruno chega a ignorá-lo. Alguns dias depois, o televisor é levado, e Bruno permanece indiferente. Até que, após uma última conversa – em que, na realidade, não há comunicabilidade, pois Eva já fora embora e Bruno e o banqueiro não conseguem fazer-se compreender – é leiloado o trailer.

Com o tempo, vai se evidenciando crescentemente a falta de semelhanças entre os personagens. Esta disparidade de pessoas que, contudo, convivem sob o mesmo teto (em um trailer!), é cômica; mas por outro lado, chega a ser perturbadora: com quem desabafar em um momento de agonia? A atmosfera é profícua para o desenvolvimento de uma solidão sistêmica, que atingiria a cada um – ainda que disfarçadamente –, influenciando todo o grupo, mas prejudicando substancialmente Bruno.

Vale consignar ainda que Bruno S., já imortalizado pelo “Enigma de Kaspar Hauser” (1974), do mesmo diretor, está novamente convincente no papel homônimo: o de Bruno Stroszek; a única diferença é o “S” do Bruno real, abreviatura de Schleinstein. Aliás, curiosamente, todos os personagens deste filme – cujo roteiro foi escrito em apenas 04 dias! – possuem o nome ficcional igual ao nome real; assim, a prostituta Eva chama-se Eva Mattes e o ancião Scheitz foi batizado Clemens Scheitz. Como se não bastasse, Bruno, assim como o personagem, também possuía um atraso intelectual e era músico de rua.

Doses cavalares de realismo? Sim. E Pode-se falar também em doses cavalares de melancolia, pois o realizador alemão criou uma parábola de nuances balzaquianas sobre a perda de ilusões, e enfeitou-a magnificamente com geniais tomadas em campos amplos, feitas em planos gerais, além da fotografia belíssima de Stefano Guidi, Wolfgang Knigge, Edward Lachman eThomas Mauch, equiparável a paisagens pintadas em telas.

Outro paralelo interessante que se pode fazer é entre Stroszek e a morte de Ian Curtis, vocalista da banda pós-punk inglesa Joy Division, sobre quem há inclusive o filme biográfico “Control” (2007), de Anton Corbijn. É no mínimo interessante saber o que segue: ambos eram músicos e tristes; Stroszek foi esmagado pela vida rápida, fria e individualista da América e Curtis suicidou-se às vésperas de uma viagem para a América com a banda; e este foi o último filme assistido por Curtis antes de sua morte. As semelhanças não poderiam passar despercebidas. É por isso que, no filme “Control”, há uma sequência em que claramente Curtis está assistindo a Stroszek na TV, no exato momento em que o trailer em que Bruno morava é leiloado pelo banco em virtude de dívidas não pagas.

Por falar em vida esmagadora, além do leilão do trailer, Eva revela-se uma oportunista ingrata – pois um dos motivos da retirada do trio da Alemanha foi a violência com que dois agenciadores de prostituição se portavam para com ela – a ir embora para Vancouver com uma dupla de caminhoneiros, entediada que já estava da vida ao lado de Bruno. E o arremate final se dá com a prisão de Scheitz após um inexperiente assalto que pratica com Bruno à uma mercearia, de cuja captura este último escapa milagrosamente.

Eva representa não só a ingratidão, mas o egoísmo, a sujeira do mundo. Aproveitando o ensejo, pode-se então dizer que o pretenso cientista Scheitz, um aficcionado por magnetismo animal e invenções inúteis, que apenas pensa vaidosamente em si enquanto é cego em relação ao mundo ao seu redor, faz as vezes da loucura e da indiferença.

A crueldade da vida já fora demasiadamente mordaz para Bruno, indivíduo outrora ingênuo e doce, e o ponto de ebulição de sua revolta para com o mundo se dá na sequência final, que é uma alegoria da condição humana, isto é, de histeria e desespero, obsessão e perda de controle.

Ora, a função precípua do filme de arte é fornecer uma rica complexidade semiótica, onde tudo possui uma causa última, e os acontecimentos aparentemente mais superficiais tem um fundo de crítica ou de caricatura. A quem interessar, deixo o recado: isto não falta em Stroszek.



5 comentários:

  1. "Esta disparidade de pessoas que, contudo, convivem sob o mesmo teto (em um trailer!), é cômica" - não entendi o que você quis dizer com isso, amigo. Não há, definitivamente, nada de cômico ali. Talvez você tenha desperdiçado palavras. Saudações.

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  2. Olá amigo,
    Agradeço a crítica. Contudo, devo dizer que não creio ter desperdiçado palavras. Por dois motivos: o primeiro é que eu estabeleci o antagonismo entre a comicidade e o caráter perturbador coexistindo na mesma sequência; não deixei, portanto, de chamar atenção para o quão terrível se tornara a convivência de estranhos. O segundo motivo é que eu já mencionara acima o humor "tchekhoviano" do filme, aquele sutil, que nos faz abrir ligeiros sorrisos, nunca dar gargalhadas. E acho mesmo que o Herzog pretendeu dar esse tom irônico ao seu filme. :)

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  3. Muito bom o seu texto. Resumiu muito bem o filme.

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  4. Excelente análise sobre o filme. Mas alguém poderia me retirar uma dúvida? Ouve-se na cena final o som de um tiro, seria que o personagem cometeu suicídio?

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