quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"O Salário do Medo", de Henri-Georges Clouzot (1953)



É costume geral das nações atribuir ao cineasta Alfred Hitchcock o título de mestre do suspense. Porém, outros realizadores há que, mesmo sem o renome de Hitchcock, criaram obras-primas do (ou com) suspense. É o caso do francês Henri-Georges Clouzot.


Nascido em Niort, França, em 1907, Clouzot teve uma vida conturbada. Iniciou sua carreira como escritor por volta de 1925, momento em que mudou-se para Paris e passou também a estudar ciência política. Seus escritos chamaram a atenção de empresários alemães do meio cinematográfico, e Clouzot foi contratado para traduzir filmes alemães para o francês. Sua amizade com judeus, contudo, rendeu-lhe a demissão, quando então retornou ao seu país de origem. Após alguns anos, em plena França ocupada pelos nazistas, tornou-se roteirista da Continental Filmes alemã, com a qual também veio a ter problemas. Sua vida piorou ainda mais quando descoberta a relação que possuíra com este estúdio, o que ocasionou uma proibição para filmar, do governo francês, até 1947. Isto não impediu que o beligerante cineasta filmasse clandestinamente, até mesmo durante a ocupação alemã na 2ª Guerra Mundial. Seu reconhecimento só veio alguns anos mais tarde, com a realização de novos filmes que geraram orgulho à nação francesa – dentre eles “O Salário do Medo” – e garantiram o retorno de sua popularidade.

Por ter vivenciado a guerra, isso exerceu forte influência em sua filmografia, onde tornou-se recorrente a construção de personagens rudes e embrutecidos pela vida e a exploração de problemáticas políticas e sociais.

Ambientado na América do Sul, e baseado no romance homônimo de Georges Arnaud, “O Salário do Medo” é um de seus filmes mais realistas. A miséria, a dureza da vida e o abandono governamental são apenas alguns dos elementos que caracterizam o povoado de Las Piedras – sob enfoque nas primeiras cenas –, situado na Guatemala; paupérrimo, aparenta haver sido esquecido pelo mundo. O efeito disso não passa ao largo da captura de Clouzot, que logo de cara põe o espectador diante de homens sobressaltados, desconfiados e agressivos, sem coisa alguma a perder. Trata-se de um irrepreensível retrato sociológico, que reforça a tese de alguns de que o homem, quanto mais perto do estado de natureza, isto é, mais distante de elementos civilizatórios coercitivos (ou regras) e com menos recursos para uma vida digna, mais tende a um agressivo egoísmo e a uma autodefesa ininterrupta, própria do instinto de preservação da espécie. Dentre eles está Mario (Yves Montand, em um papel diferente do seu costumeiro), o protagonista da fita em questão.

A vida vai seguindo desta maneira, até a chegada de Jo (Charles Vanel), que parara ali por acaso.

O recém-chegado logo identifica-se e trava amizade com Mario, pois eram ambos franceses. De se ressaltar a construção destes personagens, notadamente Jo, um homem que demonstra total ausência de medo, e que acabamos por associar a uma bravura que normalmente só encontramos no gênero western. Com o desenrolar da película, porém, Clouzot o desconstrói; aprendemos então que muitos homens são superficiais, e aquilo que julgamos ser sua personalidade é apenas uma “capa”, que esconde um ser humano totalmente diferente; demonstra ainda que, aqueles que confrontados pela primeira vez com um sentimento novo, provavelmente terão dificuldades para lidar com ele, e irão desmontar. Aqui, o sentimento é o medo.

Pois bem. É anunciado um incêndio em uma refinaria de petróleo da Southern Oil Company (SOC), a algumas centenas de quilômetros dali. A empresa americana possuía um representante da mesma nacionalidade chamado Bill O’Brien (William Tubbs). Após uma reunião de O’Brien com outros empresários da SOC, chega-se à conclusão de que a única maneira de solucionar o infortúnio é através do uso de 200 galões de nitroglicerina (para explodir o oleoduto causador do incêndio e, assim, apagar o fogo), os quais deveriam ser transportados por 2 caminhões até o local, cada qual com 2 passageiros, enfrentando-se uma estrada tortuosa pelas montanhas, e repleta de obstáculos. Àqueles que cumprissem tal missão estava reservada a recompensa de 4 mil dólares.

Daí em diante, o filme toma um outro rumo. Ao contrário da vida de bares, bebida e (pelo menos aparente) tranqüilidade do povoado, agora a aventura aparece. Muito louvável a criatividade do diretor quanto aos empecilhos que surgem aos viajantes; estes, diga-se de passagem, praticamente suicidas.

Além de tudo que já foi exposto, há ainda duas características deste filme a serem destacadas.

Em primeiro lugar, é feita uma crítica aos maus efeitos do capitalismo, inexorável na formação das desigualdades. O clima de subdesenvolvimento é perturbador. A própria sequência inicial já denota este caráter, quando enquadra uma criança brincando com um inseto numa poça de lama.

A segunda evidente característica é o cunho existencialista que permeia todo o desenrolar da narrativa. Se a teoria sartriana pregou a liberdade e a individualidade do ser humano, além de uma responsabilidade pessoal pelos seus atos, podemos ver isto como algo flagrante na narrativa, onde homens estranhados viajam juntos, mais agem do que comunicam-se, e apenas cooperam quando isto é indispensável; cada qual visando a recompensa prometida a quem cumprisse a missão-desafio, pois o dinheiro era a única maneira de pagar uma passagem de avião e ir embora dali, e ainda sobraria bastante. Deflagra-se o existir pelo existir, sem qualquer preocupação com a essência, e sim tão-somente com a busca por um “existir melhor”.

O filme ganhou o BAFTA de Melhor Filme, o Urso de Ouro no Festival de Berlim e o Grand Prix no Festival de Cannes como Melhor Filme e Melhor Ator para Charles Vanel.
Ao final, ficam os seguintes questionamentos: Até que ponto irá a dominação do homem sobre o homem? Será possível que o medo tenha um preço? Quem continuará pagando o salário do medo?