quinta-feira, 17 de março de 2011

"Eraserhead" (1977), de David Lynch




“Eraserhead” (1977) é o primeiro filme de David Lynch. Em geral, o que vem à tona em nossa mente, ao pensarmos nisso, é que o filme não representa o melhor do diretor que o concebeu, este ainda pendente do alcance de sua plenitude, o que acontecerá apenas anos mais tarde, dotado que estará de maior experiência. Porém, sucede aqui precisamente o contrário. Neste filme, Lynch utiliza diversos recursos que se tornariam recorrentes ao longo de toda a sua obra, demonstrando que já dispunha de todo o gás necessário a um bom realizador, de modo que muitos consideram este seu melhor filme; é a opinião, por exemplo, de Stanley Kubrick e Mel Brooks, só para citar dois ícones do cinema moderno.


Observe a expressão de um espectador de “Eraserhead” e constatará o ponto de interrogação personificado, o espanto, a surpresa, a dúvida. Esse foi mesmo o efeito que quis causar o diretor David Lynch (“Duna”, “Veludo Azul”, “O Homem Elefante” e outros).

Na filmografia lynchiana, segundo a ótica do cinema de autor, é amplamente perceptível o modo fantástico como o diretor frequentemente “brinca” com o sincretismo entre o real e o irreal. “Duna” (1984) é uma ousada ficção científica que ilustra bem esta afirmação. Em “História Real” (1999), o diretor narra a viagem que um homem muito idoso empreende em um cortador de grama através de uma longa estrada, para visitar seu irmão moribundo. Ao mesmo tempo em que não cessamos de considerar uma viagem daquela proporção, em um meio de transporte pequeno, lento e vulnerável, um absurdo do ponto de vista lógico-racional, nos tornamos cúmplices do protagonista, a todo instante na torcida para que este chegue a seu destino. O que nos faz acreditar nesta possibilidade, se nós mesmos jamais acreditaríamos caso o episódio se desse em nossa realidade tangível com, por exemplo, algum parente? É justamente a irrealidade em sua fusão com a realidade, num conjunto imagético indissociável.

A dicotomia irrealismo-realismo é a característica precípua de “Eraserhead”. É brilhante o modo que o então jovem David Lynch a expõe, causando-nos um fator afetivo-participativo perturbador e, ao mesmo tempo, interessado. Torna-se despiciendo, contudo, citar cena por cena da fita, até porque é preferível resguardar a surpresa do espectador.

Considerado pela maioria dos fãs de Lynch seu filme mais enigmático, aparentemente não há ainda um argumento plausível para contestar tal opinião. O próprio cineasta o definiu como “um sonho sobre coisas sombrias e inquietantes”. Apenas escapa da afirmação categórica de ser o mais misterioso de Lynch por haver dissidentes que acreditam, por exemplo, que “A Estrada Perdida” (1997) vence-o. Em todo caso, este sonho – ou pesadelo – possui diversas passagens propositalmente inexplicáveis, de modo a gerar uma infinidade de interpretações, que nunca chegarão de fato a uma resposta concreta.

Realizado em 1977, após 05 conturbados anos de filmagens e edições intermitentes – pois não havia dinheiro suficiente, e nem apoio dos donos do estúdio onde foi rodado –, este foi o primeiro filme de Lynch, feito quando este somava 31 anos de idade.

O roteiro, do próprio Lynch, conta a estória de Henry Spencer (Jack Nance), um homem solitário e esquizofrênico, que vive num pequeno quarto suburbano, num cenário pós-industrial visivelmente devastado e abandonado. Henry namora com Mary (Charlotte Stewart), uma graciosa garota loira que pertence a uma família de excêntricos. Certa vez, deixa um recado com a vizinha de Henry, para que esta o informe sobre um convite de jantar em sua casa, onde pretende apresentá-lo à família. Na oportunidade, estranhíssimos acontecimentos são inadvertidamente mostrados, chocando-nos: a avó que, nota-se, passa dias inteiros sentada numa cadeira sem mover um músculo; o pai, um encanador com deficiência nos joelhos por ter sido o responsável pela instalação de toda a tubulação da região, além de rir sem motivo algum e ser indiferente a tudo; a mãe, que tenta seduzir Henry; a galinha que Henry, ao espetar com o garfo, libera sangue e começa a mexer-se; e a informação de que Mary está grávida dele.

Infelizmente a tomada que mostra o bebê saindo da maternidade – e a enfermeira responsável pelo parto – por sinal com forte carga surrealista, foi uma de várias deletadas, e Lynch lamenta ter perdido este fragmento.

Há então um corte seco diretamente para a sequência do quarto de Henry, onde Mary passa também a residir com o bebê-monstro. Os choros incessantes deste, porém, atormentam-na profundamente, e esta volta à casa dos pais, deixando Henry a sós com o filho, na responsabilidade de cuidar sozinho do mesmo. Seus instintos esquizofrênicos, contudo, vão aflorando, de modo que torna-se negligente quanto aos cuidados necessários com o bebê, e este adoece.

O onirismo então entra em cena sem pedir licença. Henry vislumbra, em uma espécie de delírio, uma cantora no interior do aquecedor de seu quarto. Não é uma cantora comum, porém; possui bochechas enormes e caídas (maquiagem que inspirou a do Homem Elefante, alguns anos depois), e canta uma canção sobre tudo estar bem no céu. Outra vez, enquanto dorme, sonha que chega ao palco onde a estranha mulher canta, e um adubo com plantas (idêntico ao que cultiva na mesa de cabeceira de seu quarto, porém maior) está presente; os galhos decepam-lhe a cabeça, surgindo no lugar uma similar à do bebê monstruoso; a cabeça, por sua vez, ao atingir o chão, é absorvida por uma poça d’água, e cai na rua das imediações domiciliares de Henry; é então levada por um garoto a uma fábrica de borracha, para ser usada como matéria-prima para a fabricação de borracha para lápis, e daí o título “Eraserhead” (cabeça de borracha). O que David Lynch queria dizer com tudo isso? Só ele sabe. Múltiplas interpretações são bem-vindas. Mas, um detalhe: Lynch diz que até hoje, após ouvir inúmeros palpites da crítica e do público, ainda não identificou um que se aproxime com a interpretação dele próprio... Trata-se de um filme bem pessoal.

Outrossim, alguns aspectos curiosos devem ser mencionados. O bebê monstruoso, fruto de uma relação sexual – apenas insinuada – entre Henry e Mary, mais parece com um filhote deformado de bezerro, ou uma representação de alienígena; é tão estranho, que muitas outras comparações poderiam ainda ser feitas. E o mais incrível é que ninguém nunca soube como foi criado, nem mesmo aqueles que trabalharam na produção do filme: é um segredo que Lynch até hoje guarda a sete chaves.

O roteiro do filme possuía 21 páginas. Como não raro o número de minutos de duração da película correspondia ao número de páginas do roteiro – uma coincidência curiosa – Lynch foi questionado sobre se seu filme teria 21 minutos de duração. Respondeu que teria um pouco mais. Assim, foi novamente questionado: “42 minutos então?”. O cineasta nada respondeu. Ao finalizar a fita, esta contava com mais de 2 horas. Após uma edição mais rígida, na qual diversas cenas foram excluídas, a versão final ficou com 1 hora e 29 minutos, duração considerada padrão para um longa-metragem. Como Lynch conseguiu estender a tanto um filme cujo roteiro possuía apenas 21 páginas? Simples. Através da técnica slow-motion, que desacelera os acontecimentos, cadenciando-os sob um ritmo lento e impondo acontecimentos quase que em tempo real. Genial.

O enredo sugere uma não-linearidade pelos diversos devaneios em que a narrativa incorre. Ilusão. A narrativa tem um tronco central que lhe confere sentido, e a linearidade pode ser encontrada. Uma vez identificada, entende-se o percurso da estória.

Por derradeiro, anuncio aos interessados em adquirir a cópia em DVD lançada no Brasil pela Lume Filmes que poderão conferir nos Extras uma esplêndida entrevista com o realizador, esta de 1 hora e 25 minutos de duração, onde ele explica todas as dificuldades para a conclusão deste filme, como por exemplo: demorou 5 anos para ser finalizado, dentre cujas implicações o ator Jack Nance foi obrigado a manter as compridas madeixas “para cima”; Lynch fez de uma espécie de estábulo existente no estúdio seu escritório pessoal; o quarto de Henry (personagem de Jack Nance) era verdadeiramente onde o diretor dormia etc.

Eis um belíssimo programa para quando as sufocantes atividades do dia-a-dia derem uma trégua. Mas não sem prévias 24 horas de preparação psicológica.

8 comentários:

  1. ''O roteiro do filme possuía 21 páginas(...)''
    Nossa!Espantada e curiosa.
    Excelente crítica (:

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  2. Obrigado, Carol!
    É, de fato esse filme tem curiosidades instigantes! ;)

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  3. Olá Igor,
    Bela crítica!
    Uma das melhores, se não a melhor, que consegui achar.
    Parabéns!!

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  4. Assisti e reassisti ao filme e, sinceramente, o mesmo mais parece puro produto de aleatoriedade, despreocupação e desinteresse que passam desapercebidas sob o título de "surreal ou irreal". Não assisti ainda as outras obras do autor, pretendo assistir para confirmar ainda mais a crítica, mas mesmo para o contexto social cultural da época, o filme não passa conteúdo algum, não agrega valor, não constrói nada. É apenas uma tentativa forçada e frustrante de chocar o telespectador com cenas trash. Nunca fui muito fã desse estilo de filme, mas esse realmente se superou ao tentar se esconder sob o titulo de "culto", pq os outros filmes trash se afirmam como filmes aberrações msm e desinteressados em passar conteúdo, mas esse não, e isso me soa bastante antiético. Não recomendo o filme pra ninguém, é perda de tempo, temos muitos outros filmes "cult" antigos que de fato passam algum conteúdo e que quando chocam o telecpectador, é com algum propósito genuíno, construindo algum conceito, passando algum conteúdo, propondo reflexão.

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  5. Eric da para notar que você não curte mesmo o género. Você fala que o filme não presta, porque não tem capacidade mental para compreendê-lo.

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  6. Proposta? Reflexão? Compreender? Pra que? :)

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  7. Pra quem gosta deste tipo de filme recomendo um cão andaluz, o que deu origem à esse estilo.

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