sábado, 11 de junho de 2011

"Jogo de Cena", de Eduardo Coutinho (2007)


                                                                  

                                                                                          “Cinema é montagem.”
                                                                                                        Stanley Kubrick


               Desde o advento do gênero cinematográfico o qual se convencionou alcunhar “documentário”, vocábulo proposto por Dziga Vertov no primeiro quarto do séc. XX, sabe-se que estes filmes estão compromissados com a verdade (cinema-verdade), opondo-se à ficção, e aproximando-se do que era a atividade dos primeiros cinematógrafos que, para fazer experiências científicas com câmeras, tão-somente registravam a realidade tangível.
               O que vem fazendo o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho – aliás, um dos maiores do mundo na atualidade – ao largo de mais de 50 anos de carreira, 11 longas-metragens, diversos curtas e médias-metragens e uma participação frutífera como documentarista do Globo Repórter na década de 70, certamente é algo único, totalmente inovador e digno de atenção. Isto porque registra a realidade da maneira que ela é, sem as intervenções ficcionais que muitos documentaristas tem misturado pelo mundo afora, e que fazem o documentário fugir de seu foco primordial.
               “Jogo de Cena” é seu décimo longa-metragem, realizado em 2006 mediante produção da Videofilmes, e filmado no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. A proposta, inventiva e peculiar, era filmar 13 pessoas relatando fatos de sua vida. São elas 03 atrizes profissionais (Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra) e 10 mulheres anônimas, selecionadas a partir de 83 que, atendendo a um anúncio jornal, apresentaram-se voluntariamente em estúdio.
               A cena de abertura mostra o anúncio publicado no jornal carioca de maior circulação. Assim dizia: “CONVITE: Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos.” E abaixo constavam os telefones para contato. Em seguida, passa-se ao cerne da narrativa: as entrevistas. A narrativa, diga-se de passagem, é forçosamente fragmentária, isto é, estaria supostamente afastado o caráter de unidade; mas as histórias contadas em cada entrevista ligam-se umas às outras, seja de maneira mística ou por um elo provocado pelo diretor (exemplo: há uma identificação nos “subtextos”, isto é, em obras mencionadas, tais como a Medéia, que pode ser a peça teatral ou o filme, e a animação Procurando Nemo).
               A unidade pode ser sensivelmente identificada da seguinte maneira: primeiramente, algumas mulheres anônimas relatam fatos de sua vida (tendo sido filmadas em junho de 2006), e as atrizes profissionais (filmadas em setembro de 2006) interpretam algumas anônimas, relatando às vezes os mesmos fatos e, outras vezes, fatos inéditos, provocando certa confusão no espectador sobre se está sendo imitado um relato não mostrado ou se a história pertence mesmo à atriz profissional que o conta. Desta feita: histórias são contadas e posteriormente retomadas por uma reprodução fidedigna feita pela atriz profissional; é contada uma mesma história alternadamente, parte pela anônima, parte pela profissional; discursos são entrelaçados, dialogando uma personagem com outra pelas similaridades de suas experiências etc. O efeito “liquidificador” que Coutinho nos propõe é o que justamente irá aglutinar todos os relatos, sejam falsos ou verdadeiros, em um mesmo conglomerado que, além de convergir rumo a um mesmo sentido, causa em nós o impacto de veracidade geral, que torna sem importância sabermos se houve representação ou se o relato foi verdadeiro e sincero. Daí o “jogo de cena”.
               Pode-se dizer então que o primeiro – e, talvez, o precípuo – fator a requerer grande atenção nesta fantástica obra é o uso inteligentíssimo e dinâmico da montagem, o elemento de linguagem que aqui se sobressai. Aliás, a montagem não só neste filme é elemento de destaque, já que no cinema, como um todo, é com freqüência importante de uma tal maneira, que confunde-se com o fazer cinema em si; pode-se dizer que uma boa montagem é capaz de fazer um bom filme. Por isso este elemento fascinou tantos teóricos e cineastas de todo o planeta ao longo do séc. XX.
               Vsevolod Pudovkin, cineasta russo, citado por Christian Metz, afirmou:
A noção de montagem, além de todos os sentidos particulares que lhe são às vezes atribuídos (colar planos após planos, montagem acelerada, princípio meramente rítmico etc) é em verdade o essencial da criação fílmica: o ‘plano’ isolado não é senão um pedacinho de cinema; não é senão a matéria-prima, fotografia do mundo real. Só se passa da fotografia ao cinema, do decalque à arte, pela montagem. Com tão ampla definição, ela se confunde simplesmente com a própria composição da obra.
               Na obra de Coutinho, há uma planificação que fornece continuidade no conteúdo com moldes formais de descontinuidade, a partir do que o cineasta constrói a articulação psicológica de seu texto. É uma espécie de quebra-cabeça que, apriorísticamente, parece com efeito reunir peças que não se encaixam, mas que, no desenrolar da trama, vão delineando o contorno desejado pelo realizador.
               Na mesma linha de raciocínio está o capítulo 02 do excelente livro Compreender o Cinema e as Imagens, de organização de René Gardies, de cujo bojo se pode extrair o seguinte:

A primeira função da montagem é fornecer um suplemento de sentido às imagens, cujo mero conteúdo não poderia dar esse sentido. A associação dos planos permite ligar situações, reunir ou separar elementos, articular numa determinada continuidade aquilo que, sem esta operação de montagem, seria visto apenas como isolado (...). 
               Esta continuidade é conferida ao filme pela criação consciente de todas as espécies de elos que a montagem é capaz de gerar (narrativos, sensíveis, temporais e de conteúdo). Destaca-se aqui os elos de conteúdo, uma vez que Coutinho soube explorar muito bem os modos de enlace dos discursos e raciocínios das personagens. Aliás, estes discursos e raciocínios são comuns não somente às personagens, mas ao povo brasileiro em geral; podem ser compreendidos como uma pequena amostragem dos costumes e da cultura brasileira, bem como das formas de expressão. Este método de lógica indutiva é recorrente em se tratando de Eduardo Coutinho (vide, por exemplo, Edifício Master, de 2002). São expostos temas (ou problemas) que comumente assolam brasileiros, como o advento de uma gravidez precoce e não-planejada, exclusão social por fatores discriminatórios (que em certos casos conduzem os marginalizados à tentativas – na maior parte das vezes frustradas – de seguir os padrões impostos); e encontramos também temas mais “globais”, como a religiosidade, a relação do indivíduo com a perspectiva da morte, a relação deste com a obra de arte segundo suas próprias experiências, relações entre pais e filhos, entre outros.
               Os nomes das personagens não são mostrados. Não para mantê-las no anonimato – até porque as três atrizes profissionais são muito famosas – mas para tornar todas indistintas, opondo-se desta forma a outras formas de entrevista, como as de caráter jornalístico.
               Não há música. A atmosfera é seca, o que induz dois efeitos básicos: o espectador volta sua atenção para o lado discursivo-ideológico, desviando-a de ações que compreende estarem no contracampo; aumenta a pancada emotiva dos relatos, pois não há trilha sonora que nos embale e console do que estamos ouvindo. Além disso, o cenário é único: a entrevistada sentada em uma cadeira no palco, diante do diretor e dos cinegrafistas (que não aparecem), e de costas para as cadeiras vazias do teatro. Sobre isto, enalteço o belo comentário do crítico Carlos Alberto Mattos, que assim se pronunciou: “a plateia vazia representa o espírito da representação; trata-se de uma situação-teatro, e não de teatro em si”.
               É preciso ressaltar ainda o impressionante caráter antropológico que Coutinho empresta à sua película.
                Estamos diante, todo o tempo, de um filme sobre “o outro”. Verdadeiro exercício de alteridade, o importante aqui é buscar entender e aceitar o outro em suas diferenças e dramas pessoais, e saber que, se não passamos por nada daquilo, podemos um dia vir a passar, ou conhecer alguém que venha a passar, de modo a nos tornarmos afetados como as atrizes em sua tentativa – dificílima – de representar as mulheres anônimas. Se algo foi inventado, tornou-se verdade em sua mistura às primevas verdades, e em sua capacidade de emocionar o emissor da mensagem (que poderia ser qualquer um de nós) e o interlocutor (diretor, os demais envolvidos na produção do filme e, efetivamente, nós).
                Finalizo mencionando a frase proferida por Marília Pêra em sua entrevista que, além de ser um verdadeiro protocolo institucional do ofício do ator, perfaz-se elucidativa para uma das principais propostas de Eduardo Coutinho, a de mostrar os desafios de representar: “Quando o choro é verdadeiro, a pessoa sempre tenta esconder as lágrimas. O ator, principalmente o contemporâneo, propositalmente mostra”. Marília é uma atriz contemporânea, mas não precisou de um cristal japonês para lacrimejar. E olha que tentou esconder as lágrimas.

2 comentários:

  1. Eu tive a honra de poder assistir este filme em um cinema de Porto Alegre e devo dizer que pra um documentário superou todas as minhas expectativas, gostei muito mesmo. Parabéns pelo blog, textos inteligentes. Já estou seguindo!
    Caso queira seguir o meu segue meu link:
    http://fofocandoepipocando.blogspot.com/

    Críticas, dicas, novidades, sugestões de filmes, tudo sobre o mundo maravilhoso do cinema.

    ResponderExcluir
  2. Interesantíssimo artigo. Muito obrigado.

    Se você quiser ler uma entrevista à montadora do Coutinho, está aqui: http://www.videoguru.com.br/videoguru-entrevista-jordana-berg-montadora.html

    Eu também a achei interessante.

    ResponderExcluir