segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

"Três homens e uma noite fria" (2008), de Mika Kaurismäki



 

Só se nasce uma vez, mas se morre muitas mais.

 
“Kolme viisasta miestä”, em seu título original, é um recente filme finlandês de impacto garantido no público consumidor das Américas. Com padrão narrativo que não nega as raízes europeias – ritmo lento; personagens cuja psique está visceralmente exposta em insistentes, mas gostosos primeiros planos; longas sequências –, a missão do espectador é assistir até o fim para ver no que resultarão os estados psicológicos de seus três personagens centrais: Erkki (Kari Heiskanen), Matti (Pertti Sveholm) e Rauno (Timo Torikka).
Erkki é um famoso fotógrafo cujo ofício é registrar pessoas mortas ou em sofrimento pré-morte, Matti é um paranoico inspetor de polícia tendente a corrigir as pessoas ao seu redor não sem certa dose de brutalidade – reflexo de seus demônios interiores – e Rauno é um ator que mudara-se para Paris e já conseguira papéis interessantes, contudo pagando o preço de ter-se afastado por 30 anos de sua família.
O elemento de linguagem correspondente aos atores é, sem sombra de dúvida, o principal eixo narrativo nesta película que opõe estados mentais de insatisfação consciente com a vida e incompreensão do papel que cada qual desempenha em suas existências à coerção social de felicidade, sobretudo em épocas como a natalina. Se o natal é a ambientação, o ponto de partida da estória é a forma com que cada personagem acaba se entrelaçando: a esposa de Matti entrara em trabalho de parto; Erkki vestira-se de Papai Noel para visitar o filho de um casamento malsucedido sem ser reconhecido pelo mesmo, e fora mal recebido pela ex-esposa e o novo parceiro desta. Tem também um câncer terminal, e já estava em vias de suicidar-se, não fosse um convite de Matti para que se encontrassem em um bar; e Rauno chegara a Helsinki para rever a ex-esposa e o filho, e logo descobrira que a primeira acabara de suicidar-se, encontrando-se ainda no hospital. Eis que o mesmo hospital em que nasce o filho de Matti é aquele que acaba de atestar a morte da ex-mulher de Rauno, e os dois se encontram; outrossim, a esposa de Matti, no instante em que dava à luz, ao ser questionada sobre se o filho era de Erkki, responde afirmativamente, e o paranoico policial já ligara para o amigo, fazendo-lhe o estranho convite já referido. O destino unia os três, posto que, ironicamente, não estavam envoltos em circunstâncias familiares típicas para passar a noite.
Na medida em que os personagens acima referidos, amigos de infância, se reúnem após anos em Helsinki, no dia 24 de dezembro, passam, enlevados por algumas bebidas, a trocar confidências em um descortinar crescente dos dramas de cada um, expondo quem realmente são e o que realmente sentem, libertando o eu interior das prisões que se impuseram como condição para um bom “cartão de visitas” pessoal e para se enquadrarem nos padrões sociais. O castelo de sombras que construíram de modo a melhor aceitar suas vidas entra em ruínas, pois somente assim são capazes de se reencontrar em si mesmos.
A música, por sua vez, não funciona aqui como um elemento linguístico, mas é retratada como o veículo de libertação por excelência através do karaokê existente no bar, que se torna o suporte através do qual cada um expulsa seus elementos de aflição cantando músicas metaforicamente coerentes com suas situações.
Após algumas horas de conversa e revelações, dois outros personagens entram em cena, vale dizer, uma misteriosa mulher russa (interpretada por Irina Björklund), e o filho de Rauno, Tero (Tommi Eronen), convidado por aquele a encontrá-los no bar.
O nome da personagem russa é Magdalene (possível referência a Maria Madalena, e em certo momento Matti chega a insinuar à Erkki que aquela poderia ser uma prostituta que imigrou para a Finlândia). Além disso, os amigos são três – exatamente os número dos reis magos que anunciam o nascimento de Cristo na Bíblia – e em certa cena eles próprios chamam a si mesmos de Gaspar, Belchior e Baltazar, sendo que Tero faria as vezes de Jesus.
Ao contrário dos filmes de natal sempre esperados – mormente por influência da tradição estadunidense –, aqueles onde há sempre papais noéis, pessoas atrasadas para comprar presentes e situações “engraçadas” envolvendo tais figuras – “Três homens e uma noite fria” se apresenta como um contra-espírito natalino, um anti-padrão estético total, e deixa o espectador desavisado em estado reflexivo e questionador por certo tempo; ou, sendo este mais sensível, nunca esquecerá da peculiaridade da abordagem. O predomínio de ambientes escuros na bela fotografia não se dá por acaso, funcionando como um reforço para que se reflita a escuridão das almas de cada um, cujas perturbações acabam vindo à tona.
                            Porém, o filme não foi concebido para revolucionar ou promover qualquer inovação artística; é iconoclasta, mas ao mesmo tempo simples, de narrativa linear e acessível.  grande trunfo está na dificuldade, provocada ao público, de assimilação da grande confusão que reina no âmbito psicológico de cada um, e toda a conjuntura que embalou a produção fílmica converge para uma densidade tipicamente escandinava, que o peculiariza no cenário atual, apesar de nivelado em seu local de origem. O brasileiro há de receber um filme como este de maneira similar à que um russo haverá de receber um filme como "Cidade de Deus". Perfeitamente compreensível. É o choque cultural. Mas é possível identificar que a Europa vem importando, notadamente na última década, certos padrões dos "filmes de arte" dos EUA, o que se pode notar nos franceses "Bem-vindo", de Philippe Lioret, e "Lírios d'água", de Céline Sciamma, por exemplo. Nesse diapasão, há filmes que, transitando em via contrária, mantem a tradição europeia e continuam a proclamar aquela velha e conhecida estética consagrada por Visconti, Bergman, Fellini e cia. E Três homens... é um deles. 

2 comentários:

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    beijos!!

    Emilia

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    1. Emilia, muito obrigado! Só não entendi muito bem sua proposta. Você gostaria de associar meu blog a sites seus? A um blog seu? E de que forma?
      Forte Abraço,
      Igor.

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