quinta-feira, 12 de setembro de 2013

“Mondo Trasho” (1969), de John Waters



“Secretamente, penso que todos os meus filmes são politicamente corretos, apesar de não parecerem. Isto porque eles são feitos com um senso de diversão”. John Waters





Com três curtas e um média-metragem no currículo, este foi o primeiro longa do diretor de “Pink Flamingos” (1972), que já encontrara seu estilo e só viria a aperfeiçoá-lo nos anos seguintes.
A produção tem no elenco a atriz Mary Vivian Pearce, que está em todos os filmes de Waters – neste, a personagem não tem um nome comum, sendo referida a princípio como “Bombshell” e, mais adiante, como “Cinderella” – e a travesti Divine (cujo nome verdadeiro é Harris Glen Milstead, e que apareceu nos filmes do diretor somente até “Hairspray – e éramos todos jovens” (1988), porque faleceria neste mesmo ano).
Com o bizarro que marcaria a carreira de seu realizador, “Mondo Trasho” faz jus ao seu nome, nos trazendo absurdos como os da matança gratuita de animais na sequência inicial (que parece não estabelecer elo lógico com o restante da narrativa), o “estuprador de pés” que ataca Bombshell em um lugar público, aparições da Virgem Maria e uma operação em que Cinderella tem os pés substituídos por grotescas patas.
Tudo isso numa trama que assume dinamismo a partir da sequência em que Divine atropela Bombshell. Põe-na então dentro do carro, leva-a a uma lavanderia (com que finalidade? Lavar e secar a roupa ensanguentada, talvez?), tem o carro roubado, arranja uma cadeira de rodas para a enferma, é capturada por funcionários de um hospital psiquiátrico e para lá levada, foge e procura uma espécie de clínica clandestina que possa socorrer Cinderella (local em que a operação já aludida acontece).
Note que não há no roteiro qualquer traço de seriedade. E nem era essa a intenção, já que o objetivo era romper com a linguagem clássica e escarnecer das grandes majors que procuravam fazer um cinema sério. John Waters faz um tipo de cinema sem limites: aquele em que você nunca sabe o que vai acontecer, e pode esperar qualquer coisa.
Considero-o, ao lado de Ed Wood, o mestre do cinema americano dito “trash”, isto é, despreocupado com o acabamento técnico, repleto de erros de montagem e mixagem de som, além de câmera trêmula, fotografia oscilante etc – e sem qualquer sentimento de culpa.
No ocaso dos anos 60, Hollywood vivenciava apenas seu primeiro grande colapso industrial (nas décadas de 80 e 90 eclodiriam outros), crise esta marcada pelo rompimento com a “Velha Hollywood” e o nascimento do American Art Film, que no plano mainstream evidenciou a safra de cineastas como John Cassavetes, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, dentre outros, mas que logo viria a ser ofuscado, como movimento, pelo surgimento do blockbuster, cujo marco foi “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg.
Nesse sentido, Fernando Mascarello explica que


[...] Ao final da década, ocorrem dois fenômenos inter-relacionados: uma brutal crise da indústria e o advento do American Art Film ou Renascimento hollywoodiano – o ciclo de filmes que suscita não apenas o uso inicial do termo Nova Hollywood, como as primeiras discussões mais explícitas sobre a possível manifestação de um pós-classicismo [...]

Entretanto, como já antecipado, esse movimento encontrou seu fim ainda enquanto florescia e começava a produzir bons frutos. Não só pelo advento do blockbuster, mas também pela configuração pós-clássica de toda uma cadeia de produção e consumo midiáticos integrada horizontalmente, destinada a promover produtos (como brinquedos, jogos eletrônicos e parques temáticos) ligados ao filme (que também tornara-se um produto), o que levou Eileen Meehan a afirmar que a análise dos filmes atuais imprescinde que “os entendamos sempre e simultaneamente como texto e mercadoria, intertexto e linha de produtos”.
Numa perspectiva macroscópica, todo esse processo teve início no pós-2ª guerra mundial, com a falência do modelo studio system, período em que a unit production (sistema de produção centralizado) cedeu lugar à package production (sistema descentralizado), o que culminou na criação de diversos estúdios independentes. Um deles foi a Dreamland Productions, estúdio de John Waters. Por congregar amigos com interesses comuns, o elenco desse diretor (quase sempre o mesmo por muito tempo) chegou a ficar conhecido como “dreamlanders”.
Waters manteve-se como um remanescente daqueles revolucionários sessentistas, influenciado pela nouvelle vague francesa, porém opcionalmente marginalizado por muito tempo em função da precariedade técnica (proposital) e do alto grau de subversão moral que suas obras apresentavam. Cineasta gozador por excelência nos EUA, fez um cinema provocador que desafiava a indústria da época, ao mesmo tempo em que ria da cara de público e crítica então chocados; um cinema que sobreviveu ao tempo e permanece iconoclasta para quem se propuser a ser dele um novo espectador.
Sinta-se convidado, portanto, ao universo de John Waters, que expressa nada mais, nada menos, que a contracultura norte-americana, com suas músicas, visuais e rebeldias instauradores de uma nova sociedade e de um novo cinema.
“Mondo trasho” é o ponto de partida de uma filmografia que merece ser descoberta e redescoberta.
 

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