– Só se nasce uma vez, mas se morre muitas mais.
“Kolme viisasta miestä”, em
seu título original, é um recente filme finlandês de impacto garantido no
público consumidor das Américas. Com padrão narrativo que não nega as raízes
europeias – ritmo lento; personagens cuja psique está visceralmente exposta em insistentes,
mas gostosos primeiros planos; longas sequências –, a missão do espectador é
assistir até o fim para ver no que resultarão os estados psicológicos de seus
três personagens centrais: Erkki (Kari Heiskanen), Matti (Pertti Sveholm) e
Rauno (Timo Torikka).
Erkki é um famoso fotógrafo
cujo ofício é registrar pessoas mortas ou em sofrimento pré-morte, Matti é um paranoico
inspetor de polícia tendente a corrigir as pessoas ao seu redor não sem certa
dose de brutalidade – reflexo de seus demônios interiores – e Rauno é um ator
que mudara-se para Paris e já conseguira papéis interessantes, contudo pagando
o preço de ter-se afastado por 30 anos de sua família.
O elemento de linguagem correspondente
aos atores é, sem sombra de dúvida, o principal eixo narrativo nesta película
que opõe estados mentais de insatisfação consciente com a vida e incompreensão
do papel que cada qual desempenha em suas existências à coerção social de
felicidade, sobretudo em épocas como a natalina. Se o natal é a ambientação, o
ponto de partida da estória é a forma com que cada personagem acaba se
entrelaçando: a esposa de Matti entrara em trabalho de parto; Erkki vestira-se
de Papai Noel para visitar o filho de um casamento malsucedido sem ser
reconhecido pelo mesmo, e fora mal recebido pela ex-esposa e o novo parceiro
desta. Tem também um câncer terminal, e já estava em vias de suicidar-se, não
fosse um convite de Matti para que se encontrassem em um bar; e Rauno chegara a
Helsinki para rever a ex-esposa e o filho, e logo descobrira que a primeira
acabara de suicidar-se, encontrando-se ainda no hospital. Eis que o mesmo
hospital em que nasce o filho de Matti é aquele que acaba de atestar a morte da
ex-mulher de Rauno, e os dois se encontram; outrossim, a esposa de Matti, no
instante em que dava à luz, ao ser questionada sobre se o filho era de Erkki,
responde afirmativamente, e o paranoico policial já ligara para o amigo,
fazendo-lhe o estranho convite já referido. O destino unia os três, posto que,
ironicamente, não estavam envoltos em circunstâncias familiares típicas para
passar a noite.
Na medida em que os
personagens acima referidos, amigos de infância, se reúnem após anos em
Helsinki, no dia 24 de dezembro, passam, enlevados por algumas bebidas, a
trocar confidências em um descortinar crescente dos dramas de cada um, expondo
quem realmente são e o que realmente sentem, libertando o eu interior das
prisões que se impuseram como condição para um bom “cartão de visitas” pessoal
e para se enquadrarem nos padrões sociais. O castelo de sombras que construíram
de modo a melhor aceitar suas vidas entra em ruínas, pois somente assim são
capazes de se reencontrar em si mesmos.
A música, por sua vez, não
funciona aqui como um elemento linguístico, mas é retratada como o veículo de
libertação por excelência através do karaokê existente no bar, que se torna o
suporte através do qual cada um expulsa seus elementos de aflição cantando
músicas metaforicamente coerentes com suas situações.
Após algumas horas de
conversa e revelações, dois outros personagens entram em cena, vale dizer, uma
misteriosa mulher russa (interpretada por Irina Björklund), e o filho de Rauno,
Tero (Tommi Eronen), convidado por aquele a encontrá-los no bar.
O nome da personagem russa é
Magdalene (possível referência a Maria Madalena, e em certo momento Matti chega
a insinuar à Erkki que aquela poderia ser uma prostituta que imigrou para a
Finlândia). Além disso, os amigos são três – exatamente os número dos reis magos
que anunciam o nascimento de Cristo na Bíblia – e em certa cena eles próprios
chamam a si mesmos de Gaspar, Belchior e Baltazar, sendo que Tero faria as
vezes de Jesus.
Ao contrário dos filmes de
natal sempre esperados – mormente por influência da tradição estadunidense –,
aqueles onde há sempre papais noéis, pessoas atrasadas para comprar presentes e
situações “engraçadas” envolvendo tais figuras – “Três homens e uma noite fria”
se apresenta como um contra-espírito natalino, um anti-padrão estético total, e
deixa o espectador desavisado em estado reflexivo e questionador por certo
tempo; ou, sendo este mais sensível, nunca esquecerá da peculiaridade da
abordagem. O predomínio de ambientes escuros na bela fotografia não se dá por acaso, funcionando como um reforço para que se reflita a escuridão das almas de cada um, cujas perturbações acabam vindo à tona.
Porém, o filme não foi concebido para revolucionar ou promover qualquer inovação artística; é iconoclasta, mas ao mesmo tempo simples, de narrativa linear e acessível. grande trunfo está na dificuldade, provocada ao público, de assimilação da grande confusão que reina no âmbito psicológico de cada um, e toda a conjuntura que embalou a produção fílmica converge para uma densidade tipicamente escandinava, que o peculiariza no cenário atual, apesar de nivelado em seu local de origem. O brasileiro há de receber um filme como este de maneira similar à que um russo haverá de receber um filme como "Cidade de Deus". Perfeitamente compreensível. É o choque cultural. Mas é possível identificar que a Europa vem importando, notadamente na última década, certos padrões dos "filmes de arte" dos EUA, o que se pode notar nos franceses "Bem-vindo", de Philippe Lioret, e "Lírios d'água", de Céline Sciamma, por exemplo. Nesse diapasão, há filmes que, transitando em via contrária, mantem a tradição europeia e continuam a proclamar aquela velha e conhecida estética consagrada por Visconti, Bergman, Fellini e cia. E Três homens... é um deles.
Porém, o filme não foi concebido para revolucionar ou promover qualquer inovação artística; é iconoclasta, mas ao mesmo tempo simples, de narrativa linear e acessível. grande trunfo está na dificuldade, provocada ao público, de assimilação da grande confusão que reina no âmbito psicológico de cada um, e toda a conjuntura que embalou a produção fílmica converge para uma densidade tipicamente escandinava, que o peculiariza no cenário atual, apesar de nivelado em seu local de origem. O brasileiro há de receber um filme como este de maneira similar à que um russo haverá de receber um filme como "Cidade de Deus". Perfeitamente compreensível. É o choque cultural. Mas é possível identificar que a Europa vem importando, notadamente na última década, certos padrões dos "filmes de arte" dos EUA, o que se pode notar nos franceses "Bem-vindo", de Philippe Lioret, e "Lírios d'água", de Céline Sciamma, por exemplo. Nesse diapasão, há filmes que, transitando em via contrária, mantem a tradição europeia e continuam a proclamar aquela velha e conhecida estética consagrada por Visconti, Bergman, Fellini e cia. E Três homens... é um deles.