Descendente
de uma família nobre russa, o diretor, produtor, roteirista e ator francês
Jacques Tati (batizado Tatischeff) teve um avô General do Exército Imperial e
um pai que fez fortuna como empresário no ramo das artes plásticas. Não desejando
seguir semelhantes carreiras, seu principal interesse, por muito tempo, foi o
esporte. Praticou boxe e rugby, tendo até cogitado se profissionalizar neste
último. Porém, ao estudar artes e engenharia na academia militar do Liceu de
Saint Germain-en-laye, descobriu uma habilidade insólita que a muitos agradou:
a de imitar seus colegas estudantes, atletas e diversas outras pessoas. Com seu
talento mimético, viu que tinha aptidão para o humor, e resolveu ingressar na
indústria do entretenimento.
Após
uma estreia composta por performances diversificadas (teatrais, circenses etc),
foi convidado na década de 30 para desempenhar papéis humorísticos em
curtas-metragens franceses, carreira que precisou ser interrompida pelo advento
da 2ª Guerra Mundial. Passada a guerra, retomou aquela que descobrira como a
sua grande vocação, ao participar de outros curtas e logo começar a produzir os
seus próprios filmes.
Tati
foi, sem sombra de dúvida, um arauto da ideia de se filmar o que deseja, e como
deseja; liberdade era acima de tudo sua bússola, e talvez por isso não tenha
tido capital para fazer tantos filmes. Deixou-nos um legado de apenas dois
curtas-metragens de ficção, cinco longas para o cinema e um para a TV, e um
documentário em curta-metragem (resgatado, editado e finalizado por sua filha,
e lançado em 2002). Destes longas-metragens, o que mais se destacou foi o
quarto, “Playtime – Tempo de diversão” (“Playtime”), de 1967.
Trata-se
do filme mais caro de Tati – e o mais caro da história do cinema francês até
aquele momento –, tendo custado em torno de $3.000.000,00, pois o diretor
construiu uma verdadeira cidade como cenário, incluindo hospital, hotel,
restaurante, casas e aeroporto, sem contar com as demais despesas de produção,
o que o levou a uma falência incapaz de ser remediada com seu filme seguinte (“As
aventuras do Sr. Hulot no tráfego louco”, de 1971), e que só pôde sê-lo
finalmente com a quitação de seus débitos por parte de um empresário e
distribuidor francês.
Feito
em completo alheamento à nouvelle vague
que estourava como movimento na França da época, o filme representa o caráter
autoral do cinema levado a efeito pelo realizador francês que, tal qual Louis
Malle, Henri-Georges Clouzot, Robert Bresson e outros, não quis se filiar à
vanguarda, mas transmitir sua própria mensagem de outra forma.
O
processo de decupagem de “Playtime” optou por planos bem longos, cuja
persistência visual logo se revela uma eficaz forma de conferir um caráter descritivo
ao filme, mas sem uma tomada de posição. O roteiro, que traz pouquíssimas
falas, dá maior fluidez visual à película. Neste bastião, são escancarados os
costumes burgueses, sobretudo o esnobismo dos ricos, a moda e o pós-modernismo
flagrante, desde a arquitetura dos imóveis da cidade – interna e externa – até
bailes jazzísticos em restaurantes. A apoteótica sequência do jantar num
requintado restaurante recém-inaugurado, que aos poucos vai sendo destruído, é
exatamente uma analogia à fachada de uma sociedade de mascarados, que é
finalmente deflagrada como tal e que terá de ruir também. Mas nada disso é
denso; ao revés, a mensagem é transmitida com uma leveza espetacular.
Acresça-se
que o fato de os personagens serem, em sua maioria, turistas que falam inglês –
e, metalinguisticamente, o próprio título original do filme ser em inglês e não
em francês – traduz a ideia de se retratar os efeitos da globalização, a nação
como não mais sendo terreno exclusivo de seu próprio povo, mas uma miscelânea
cultural.
Vale
ressaltar que, não obstante a linearidade da narrativa, não parece estar a
mesma em momento algum caminhando rumo a um sentido e a um fechamento. O
diretor filmou poucas e longas sequências em diferentes ambientes, fazendo um
apanhado comportamental da Paris dos anos 60. Entrementes, um sujeito ora
surge, ora desaparece, ora ressurge, sendo um elemento constante e que pode ser
classificado como o mais próximo de um protagonista.
Este
sujeito é o personagem que consagrou Tati, seu alter-ego Sr. Hulot
(interpretado pelo próprio diretor), que entra em cena como um desajustado,
incapaz de se integrar aos novos costumes e à debilidade comunicacional
instaurada pelo individualismo; um verdadeiro “outsider”, cujas trapalhadas
representam exatamente sua falta de lugar num mundo em transformação, o qual
não consegue acompanhar ou compreender. O estilo de comédia aqui utilizado (a
pantomima cinematográfica) é um resgate e uma homenagem a atores do período
mudo, os quais Tati cresceu admirando, como Max Linder, Buster Keaton e Charles
Chaplin. Monsieur Hulot já fora personagem dos dois longas-metragens anteriores
de Tati, “As férias do Sr. Hulot” (1953) e “Meu tio” (1958), e ainda viria a
sê-lo no filme seguinte, “As aventuras do Sr. Hulot no tráfego louco” (1971).
A
obra é assaz influente, tendo sido utilizada como referência para a criação de
“Mr. Bean”, série de televisão britânica que leva o mesmo nome, ou mesmo para
filmes como “Um convidado muito trapalhão” (1968), de Blake Edwards, que traz
Peter Sellers como um estrangeiro, convidado acidentalmente para um jantar, que
vai aos poucos causando desordens na casa de magnatas da indústria
cinematográfica com sua ingenuidade.
Aos
interessados no gênero comédia, este filme é uma oportunidade e tanto de saber
de onde vêm muitos dos truques hoje sacramentados na arte de fazer rir, e quais
as inspirações de muitos de nossos humoristas favoritos do último quartel do
séc. XX para cá.