Cineasta pouco assistido pelas novas gerações e,
entretanto, um dos grandes nomes do cinema francês contemporâneo, Louis Malle
nos legou uma série de filmes incríveis. Sua filmografia não possui um padrão
estilístico muito definido, como encontramos em Alfred Hitchcock, Ingmar
Bergman, François Truffaut e outros. Cada filme constitui um universo próprio,
a tal ponto que “Zazie no Metrô” (“Zazie Dans le Métro”, 1960) e “Trinta Anos
Esta Noite” (“Le Feu Follet”, 1963) não parecem ter sido concebidos por um mesmo
artista, tamanha é a discrepância de propostas. Isso apenas na fase francesa.
Na década de 1970, seguindo a tendência de muitos outros realizadores em
diversos tempos, muda-se para os EUA, lançando “Lua Negra” (“Black Moon”,
1975), um de seus filmes mais complexos, pela profusão de simbolismos e
estética surrealista. E prossegue apresentando obras interessantíssimas e
marcadamente autorais, diferentemente de muitos europeus ou asiáticos que se
radicam na América. Sua obra possui regularidade, o que poucos alcançam. E uma
regularidade em alto nível.
“Meu jantar com André” (“My Dinner With Andre”,
1981) é o quarto filme de Malle em solo estadunidense. Estrela Wallace Shawn e
Andre Gregory, interpretando... a si mesmos! Eles assinam também o roteiro.
Antes de entrar no mérito do que o filme aborda, vale fazer uma breve digressão
sobre esses dois artistas e seu trabalho.
Gregory era um dramaturgo famoso, que escreveu seu
maior volume de peças nas décadas de 60 e 70. Tornou-se um nome respeitado a
partir de “The Manhattan Project” (1968), e chegou a dirigir a primeira peça
escrita por Shawn, “Our Late Night”, em 1975. Logo após, inesperadamente,
decidiu abandonar o mundo dos palcos, partindo em exílio voluntário para a
Polônia a fim de encontrar o grande dramaturgo Jerzy Grotowski, onde teve
experiências teatrais experimentais e sinestésicas curiosíssimas, seguindo
depois para a Escócia, onde participou de uma comunidade espiritual. É em seu
retorno que aceita integrar o elenco parelho do filme de Malle, começo de uma
carreira como ator de cinema.
Shawn era já um dramaturgo e ator cinematográfico
(fizera uma participação em outro filme de Malle, “Atlantic City”, e em
“Manhattan”, de Woody Allen, dentre outros pequenos papéis). Mas era como
dramaturgo que já construía uma carreira mais consistente. Suas peças
alinhavam-se ao chamado Teatro do Absurdo, movimento surgido no pós-guerra por
influência da Filosofia do Absurdo (ou Absurdismo) de Albert Camus (v. “O Mito
de Sísifo”), uma forma de pensar tipicamente existencialista. O pontapé inicial
da transposição desse viés para o Teatro fora dado por Samuel Beckett em sua
peça de 1952, “Esperando Godot”, que veio a influenciar Shawn diretamente.
O cunho das peças absurdistas é eminentemente
tragicômico. Aborda-se o absurdo da inexistência de sentido no mundo e na vida
humana, a angústia da liberdade, a suspeita de estar sendo governado por forças
invisíveis erigidas a partir das estruturas de poder etc, e um tom cômico é
inserido em meio a esse turbilhão nauseante da mente, como uma resistência
final à contemplação do Nada, à epifania do Vazio.
Assim sendo, “Meu jantar com André” é quase que um
documentário; só não chega a sê-lo por inteiro pois os diálogos foram criados e
ensaiados exaustivamente antes. Os personagens, nada distintos de quem os
atores são na vida real, combinam de se encontrar em um restaurante de sua
cidade, Nova Iorque, após alguns anos sem contato. Suas esposas, quando
mencionadas, também são as reais. “Wally” está em uma fase difícil, não conseguindo
quem produza suas peças e, portanto, com a cabeça anuviada pelas contas a
pagar; Andre, por sua vez, é um homem transformado pelas experiências e tem
muitas reflexões e lições a transmitir. É pelo ponto de vista de Wally que
somos convidados a encarar toda a situação. Com efeito, ele é o narrador e o
único a aparecer sozinho nas duas isoladas e breves sequências fora do jantar.
Como uma conversa que parece saída do romance “A Naúsea”, de Jean-Paul Sartre,
operar-se-á um contraste entre um ato dos mais ordinários nos grandes centros
urbanos contemporâneos – o de jantar em um restaurante – e a feição que o
diálogo dos personagens assume, distante do início ao fim ao comum, ao que
qualquer outra pessoa embotada pelo transe anestésico da irreflexão conversaria.
As ideias postas em pauta impressionam por sua atualidade, motivo principal que
me levou a escrever esse texto. Mas esteja atento. Toda concentração é pouca.
As falas são dinâmicas, aceleradas, e encadeiam insights poderosos, demandando
uma atenção extraordinária – como faria Bernt Amadeus Capra em “Ponto de
Mutação” (“Mindwalk”, 1990).
A certa altura, Andre comenta sobre uma proposta
teatral que presenciou na Polônia, chamada “colméia de abelha”, onde 100
pessoas ficam confinadas em uma sala e tem de interagir umas com as outras como
a interpretar papéis, exceto que toda espontaneidade de que se utilizem é ao
mesmo tempo um ato do personagem e um ato da própria pessoa. Ator e personagem
se confundem num mesmo ente. A composição do personagem, quando o ator tenta
pensar como ele para melhor desenvolvê-lo e agregar-lhe complexidade, torna-se
o que agrega a si mesmo enquanto pessoa. Este relato me parece bastante
significativo na narrativa, pois metaforiza a própria relação entre os dois,
num belo traquejo metalinguístico.
O filme é montado de forma bem simples, com
economia de ângulos, que frequentemente se repetem. O diretor de fotografia
Jeri Sopanen opera um esquema padrão de plano/contra-plano conforme a fala seja
de um personagem ou do outro, geralmente mantendo no quadro parte do corpo
daquele que observa, denotando seu interesse. Ocasionalmente os planos ficam
mais fechados, capturando algum deles em close quando se torna mais importante
destacar a maneira como o mesmo é afetado emocionalmente pelo seu relato ou
reflexão. E planos de conjunto são adotados quando o efeito é retornar a um
ponto zero, geralmente quando o diálogo será interrompido por um dos garçons ou
quando um assunto se encerra para dar início a outro. Não vemos o outro lado do
salão e os demais clientes a não ser em momentaneamente, através de um espelho.
No geral, Malle parece sugerir uma teatralização do encontro e ao mesmo tempo o
próprio desajuste e isolamento do diálogo em questão perante o ambiente em que
se desenvolve.
Em um filme que é sobre Teatro e se perfaz
teatralmente – mas sem deixar de ser Cinema –, tem um pé na literatura e
filosofia existencialistas e critica muitos dos costumes pós-modernos, Malle
faz algo esteticamente bem diferente de seus trabalhos anteriores, alcançando
uma profundidade interessante com um orçamento mínimo ($475.000). E até, em
certo sentido, um movimento – a limitação do ambiente não é empecilho para que
o diretor nos faça viajar para muito distante pelas falas destes dois
singulares personagens.