sexta-feira, 1 de outubro de 2010

"Koyaanisqatsi", de Godfrey Reggio (1983)



A peculiaridade é o que marca este filme-documentário do cineasta experimental Godfrey Reggio, que contou na produção com ninguém menos que o dinossauro Francis Ford Coppola (de “O Poderoso Chefão”, “Apocalipse Now”, entre outros).

Trata-se de um inovador olhar, transbordante de inquietações e críticas, lançado à vida moderna. É uma verdadeira aula de cinema, pois reúne incontáveis modos de filmagem, seja de planos, de enquadramentos, de montagem, de musicalidade, entre outros.
O vocábulo “Koyaanisqatsi” provém da tribo indígena americana HOPI, e significa “vida em desequilíbrio”.
Total e exclusivamente baseado em imagens, possui a duração de quase 1 hora e 30 minutos, divididas de maneira tênue em duas partes.
No princípio enfoca a natureza, fazendo uma metáfora do desequilíbrio, quando exibe, em fast motion, acontecimentos naturais que ocorrem lentamente em, ao passo que, em slow motion, acontecimentos naturais que ocorrem rapidamente.
Posteriormente, dedica-se a mostrar o cotidiano febril das grandes metrópoles, e de maneira assaz poética. O vai-e-vem urbano diário é o objeto de cenas caóticas em velocidade diferente da normal, o que nos faz vislumbrar algo que no dia-a-dia não nos damos conta: o quanto as pessoas são escravas do tempo, das funções e dos padrões impostos pela civilização.
Neste filme, tudo são antagonismos. O simples de fato de mostrar primeiro a natureza em suas manifestações livres e independentes e, sem aviso, passar a enquadrar seres humanos e o mecanicismo da vida repetitiva e rotineira à qual estão presas causa-nos um grande impacto; nos confrontamos com uma fatal auto-reflexão sobre nossos valores e o significado da liberdade, que pode ser apenas ilusória.
Há mais paradoxos nas entrelinhas. Seja quando as ondas são mostradas lentamente – denotando aquilo que, por se nos afigurar impossível, seria um evidente desequilíbrio -, ou quando a formação das chuvas é focalizada acontecendo de maneira acelerada, isto é, também desequilibrada. Pode-se citar também os enquadramentos do trânsito ocorrendo em velocidade super-acelerada, fazendo uso das mais modernas técnicas digitais que existiam à época. A cultura oitentista é também objeto documental, porquanto é flagrada a “geração-videogame”, dos garotos cuja diversão tornara-se quase dependente do “eletrônico”, ou o figurino das pessoas, que nos descortina os cabelos e as roupas da época.
Godfrey Reggio preocupa-se, ainda, com a problemática ambiental. Posiciona-nos como espectadores externos de nós mesmos, fazendo-nos perceber o quanto somos contraditórios ao destruir a natureza em nome de interesses econômicos, sem nos apercebermos que, desta maneira, advirá a destruição dos próprios homens. Após estes quase 90 minutos, torna-se evidente a auto-destrutividade irrefreável da sociedade contemporânea.
Achei interessante também a retomada da sacada de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”, porém adaptada à atualidade: a devastadora Revolução Industrial, que produziu diversas indignações na classe operária e inspirou a crítica brilhante e oportuna de Chaplin é mostrada em moldes contemporâneos, quando estão em foco trabalhos ora trabalhos puramente mecânicos, ora a ação assoladora das máquinas.
Dois elementos acompanham a película do início ao fim: primeiro, a trilha sonora ininterrupta de Philip Glass, que dá o tom preciso às imagens que estão sendo mostradas, certas vezes até propositalmente antagônico, como por exemplo um arranjo lento para imagens rápidas, ou vice-versa; e segundo, as profundidades de campo e de tempo, pois há constantes travellings em eixos fixos ou móveis, grandes planos gerais (que trazem uma ótima noção descritiva), além de que a complexidade de tempos fílmicos causa a persistência visual da imagem e do tempo de exposição.
Para finalizar, só um aviso a todos que pretendam assistir a este documentário: é irreversível.
Após absorvê-lo, impossível sair às ruas, dentro do grande círculo urbano, e não pensar: “Koyaanisqatsi!”.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

"Roma", de Federico Fellini (1972)

 “Roma é a cidade das ilusões. Não é por acaso que você tem aqui a Igreja, o governo, o cinema. Cada um produz ilusões...”




Este filme faz parte da época em que Fellini, já consagrado, a cada filme que fazia já esperávamos a premiação que viria. Nada injusto, pois foi uma obra-prima atrás de outra, deixando-nos o legado de alguém que sabia de fato fazer cinema.
Sendo assim, decidi comentar aqui a respeito de “Roma”, de 1972, um dos que mais me interessam na filmografia do Diretor.
Em primeiro lugar, é preciso destacar o quanto Fellini era obcecado por Roma, mesmo tendo nascido e sido criado em Rimini. Não foi a primeira vez que a famosa cidade foi objeto de seu olhar, pois em Satyricon (de 1969), adaptação da obra homônima de Petrônio, ele nos mostrou uma imagem lisérgica de Roma, mas em sua época clássica (não de esplendor, mas de decadência, motivo de escárnio). Nem por isso ela deixou de ser apreciada na época: recebeu indicação a Oscar e influenciou sensivelmente o ideal hippie ainda existente.
Mas voltemos ao que interessa.
Neste “Roma”, a intenção do cineasta italiano foi perpassar não a clássica, mas a moderna Roma, fazendo-nos caminhar pela cidade como se fôssemos turistas que ninguém pudesse ver.
Analisa, mais do que tudo, os costumes da sociedade romana atual, fazendo severas, porém discretas críticas àqueles que teriam “perdido a identidade de romanos”. Fellini faz o tempo todo um paralelo entre as duas Romas, querendo mostrar o quanto a ideia que o mundo tem da cidade está ultrapassada, em vista da mudança que tem se processado. Tudo por conseqüência da globalização, que em muito contribui para a perda da força de uma cultura, em nome de uma universalização forçada para aproximação entre as nações.
Os personagens são irrelevantes. O Diretor se utiliza de alguns apenas para dar impulso às cenas; mas perscrutar-lhes as vidas, o porque de estarem nos lugares onde aparecem etc, não tem importância nem para o espectador.
Fica patente a desnecessidade de se trabalhar para este a construção de uma trama. Isto porque, em primeiro lugar, o filme não é linear. Em segundo, tem caráter eminentemente documental.
Se nos descortina a realidade da vida em Roma, desde o ensino escolar – passando por uma cena de trânsito, outra de pessoas no teatro, outra num restaurante etc – até a vida noturna, marcada pela prostituição. E sem economizar no cinismo!
O que nos chama a atenção também com bastante freqüência é a exibição viva da arquitetura romana, em imagens memoráveis. Li em algum lugar que Fellini sabia fazer suas críticas sem deixar que se perdesse a magia do cinema. Isto fica mais do que claro neste filme. Os amores, as desilusões, a sujeira das pessoas, e todos os demais acontecimentos corriqueiros, tudo está enquadrado de maneira poética.
Uma das principais cenas para mim é a dos operários subterrâneos, que pretendiam construir um metrô para melhorar o trânsito na cidade. Um diz para outro algo como “O subterrâneo de Roma está cheio de relíquias. Aqui não somos somente operários, mas arqueólogos. Logo, precisamos trabalhar devagar”. E, em seguida, descobrem as ruínas de uma antiga casa romana, que já contava com 2.000 anos de idade. É proposital a disparidade entre seu ambiente interno, e o que reinava ali em cima, em pleno século XX: a placidez e a beleza das pinturas que decoravam o ambiente (diga-se de passagem, bem barroco) antagonizadas pelo modernismo progressista.
Por fim, ressalto a trilha sonora, intercalada pelos sons das próprias ruas de Roma e os da genial música de Nino Rota, que fez parceria com Fellini (e com outros Diretores de renome) em diversos filmes.
Em síntese, indico este filme a quem possa interessar ver um verdadeiro retrato da Roma contemporânea, esta cidade tão carregada de história e poesia, mas cuja identidade memorial está cada vez mais em xeque, em face das transformações políticas, sociais e econômicas.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Trilogia dos Apartamentos - Parte III - "O inquilino" (1976), de Roman Polanski


Após quase uma década, o cineasta volta à sua temática de horror em apartamentos, que teve como desfecho “O inquilino”.
Este “clássico” do cinema moderno é essencialmente autobiográfico.
Trelkovski, polonês, está em Paris e pretende alugar um apartamento – ressalte-se que Polanski é polonês e chegou a ir morar sozinho na França, onde, aliás, vive até hoje –, e evidencie-se que é interpretado pelo próprio diretor, que provou ser também brilhante ator.
O filme traça a estória deste homem, que chega a um edifício no qual havia um apartamento que um amigo lhe indicara.
Logo de cara conhece a zeladora, uma mulher extremamente mal-humorada, que de muita má vontade lhe mostra o lugar. Ela comenta em ar de riso que a inquilina anterior, Simone Choule, atirara-se pela janela. Trelkovski pergunta se ela morrera; ao saber que ainda estava no hospital, vai atrás da mesma. Lá, conhece uma amiga da suicida, Stella (Isabelle Adjani, linda como sempre), que também fora visitá-la. A enferma não reconhece a amiga e, quando esta tenta comunicar-se, aquela dá um grito aterrorizante.
Quando os visitantes deixam o hospital, logo tornam-se amigos, e o protagonista cada vez mais obcecado com o que teria levado Simone ao suicídio.
Com o passar dos dias, vai notando estranhos comportamentos em seus vizinhos. Seja por estarem o tempo inteiro reclamando de barulho em seu apartamento, seja por ficarem horas imóveis no banheiro defronte à sua janela encarando seu apartamento.
Passa a comentar com seus amigos estes estranhos episódios que, como é costumeiro no cinema, são encarados com zombaria e descrédito. Aliás, desde a primeira aparição dos amigos de Trelkovski, numa pequena “festinha” que organiza em seu apartamento, eles são mostrados com uma identidade homogênea, mas dispare em relação à do protagonista, o que contribui e muito para que o espectador o considere logo solitário e focalize suas atenções neste personagem.
Com o passar do tempo, as estranhezas tornam-se crescentes. Num café em frente ao edifício, Trelkovski se dá conta de que tem sentado na mesma mesa que Simone costumava sentar, bebido chocolate (e não café), como ela fazia, e fumado não sua marca de cigarros favorita, mas Marlboro, tal qual a falecida.
Nesse momento, o espectador atento poderá notar a desintegração da personalidade do polonês que, na medida em que vai perdendo sua identidade, vai incorporando a de Simone Choule.
Torna-se neurótico, paranóico, desconfiando de tudo e de todos, visivelmente encaminhando-se para a loucura, sobretudo quando vai a uma loja comprar sapatos femininos e uma peruca e, em sua casa, veste-se de maneira idêntica à da suicida, com um vestido seu que ficara no armário, e maquiagem que ficara guardada numa gaveta. Sua intenção é a de assustar os vizinhos que o encaram através da janela do banheiro, mas ele próprio já perdera o controle sobre si; já se metarmofoseava em Simone.
É aterrorizante a agonia que demonstra o protagonista com a situação que lhe ocorre, muito forte e contagiante: não tem quem não se sinta na pele do locatário, quem não tenha vontade de “esganar” os vizinhos.
Ele passa então a ter alguns poucos lampejos de racionalidade. Em um deles, conclui que querem levá-lo ao suicídio e, em uma espécie de delírio esquizofrênico, acredita ter finalmente compreendido o suicídio de Simone. Procura então Stella, a única em quem ainda confiava, e com que acreditava poder contar. Esta mostra-se atenciosa e prestativa para consigo, mas, mesmo assim, Trelkovski chega ao ponto de pensar que ela está envolvida nesta grande conspiração.
Por falar em conspiração, tudo neste filme quer nos levar a crer que há uma conspiração, onde estariam envolvidas todas as pessoas que Trelkovski conhece; ao mesmo tempo, não sabemos se é apenas delírio do personagem, até porque, no transcorrer da película, há uma gradativa mudança de perspectiva, onde o espectador é levado a enxergar a trama com o olhar dos vizinhos, não mais daquele. Não sabemos se Trelkovski é mesmo vítima, ou se tornou-se psicótico, o que é recorrente nesta Trilogia. Aliás, quem assistiu “Psicose”, do mestre Alfred Hitchcock, certamente encontrará semelhanças.
Trelkovski vai sentindo-se cada vez mais perseguido, e passa a reinar uma espécie de atmosfera claustrofóbica, culminando na magistral sequência clímax, que precede a estarrecedora sequência final.
É difícil destacar algo específico neste filme, pois tudo é excelente. Não obstante, ponho “sob os holofotes” – a quem interessar – aquelas que pra mim são as principais características de um bom filme, na minha opinião todas aqui presentes:
Direção e atuação brilhantes de Polanski; roteiro fascinante; e a genial fotografia de Sven Nykvist, que fez parceira em inúmeros filmes do genial cineasta sueco Ingmar Bergman, pois, com suas sombras criou uma atmosfera pesada e capaz de conduzir o espectador bem mais rapidamente à angústia que sentia o protagonista.
Com isso, encerro esta tríade de textos, esperando que, com isso, venha a contribuir de alguma maneira a que mais pessoas procurem estes filmes em locadoras, em lojas, na internet, ou até mesmo no comércio informal. Valem a pena.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Trilogia dos Apartamentos - Parte II - "O bebê de Rosemary" (1968), de Roman Polanski


NOTA: Antes de dizer o que tenho a dizer, devo antecipar que, dada a complexidade e a numerosidade de detalhes com sentidos propositalmente coerentes com o objetivo deste filme, tive de me ater apenas aos mais importantes, ou então este texto inflaria absurdamente, quando é (ou deveria ser) relativamente curto.

Pois bem.
Três anos após o aterrorizante “Repulsa ao Sexo”, Roman Polanski nos presenteia com esta outra obra-prima, o filme mais conhecido da trilogia, além de ser tido com um dos mais assustadores filmes de horror já feitos: “O bebê de Rosemary”.
No elenco estão John Cassavetes, que fora revelado como ator (pois já era cineasta) um ano antes, pela trama de guerra “Os Doze Condenados”, de Robert Aldrich, e Mia Farrow (que despertou os olhares do público do mundo inteiro) no papel de Rosemary Woodhouse.
Adaptado do romance de Ira Levin, e vencedor de dois Oscars (Melhor Atriz Coadjuvante para Ruth Gordon e Melhor Roteiro Adaptado) Rosemary (Farrow) e Guy (Cassavetes) são um jovem casal que se muda para um apartamento com o intuito de começar uma vida a dois.
O espectador inevitavelmente simpatiza de cara com os personagens, cujo amor e sintonia parecem transbordar e contagiar a todos.
Este quadro, porém, vai paulatinamente sendo revertido, quando os vizinhos começam a ter atitudes estranhas, o que deixa Rosemary bastante perturbada. Minnie Castevet (Ruth Gordon) é uma senhora bastante solícita e inconveniente, que está sempre oferecendo coisas a Rosemary, utilizando como pretexto a “política da boa vizinhança”, mas que, com o tempo, acaba tornando-se suspeita de algo misterioso.
Quando resolvem ter um filho, o Dr. Abe Sapirstein é o médico responsável pela gravidez de Rosemary que, não obstante suas queixas de dores e diversas manifestações corporais que não parecem normais, sempre diz que nada há de errado.
Todos, aliás, parecem concordar com a idéia de que Rosemary está preocupando-se à toa, e considerar que continue a tomar os sucos oferecidos pela Sra. Castevet, preparados a partir de ervas que ela própria cultiva em casa.
No decorrer do filme, percebemos o quanto os personagens mais insuspeitos vão sendo lentamente desmascarados. Posso citar o fato de Guy, que era ator, ter conseguido um papel importante através de uma inexplicável e repentina cegueira do ator que fora escolhido em seu lugar. Ressalto também o fato de Rosemary ganhar de Minnie Castevet um amuleto feito com raiz-de-tanis – que houvera antes sido dado a uma moça que morava com os Castevet, e se suicidara –, uma espécie de planta com mau odor, responsável por dopar as pessoas, e melhor mantê-las sob influência (depois descobrimos que tratava-se, na verdade, de um fungo utilizado em rituais satânicos). Posso citar ainda a questão do mousse de chocolate que Rosemary bebe na noite em que tinha planejado conceber um filho com seu marido; ele continha um poderoso alucinógeno, graças ao qual se produziu uma das mais importantes e memoráveis cenas deste filme: a de quando Rosemary, após quase desmaiar, é conduzida à cama por Guy, e passa então a experienciar algo bizarro, uma mistura de sonho e realidade, onde parece ser objeto de um ritual, sendo que quem está envolvido são os vizinhos e seu próprio marido, e onde tem relação sexual com o demônio, quando, corporeamente, o teve com Guy.
Só uma digressão: a dicotomia delírio x realidade, presente em toda trilogia, aqui também existe. Mas neste filme há também uma outra: catolicismo x satanismo. A todo instante podemos perceber a maneira massiva com que Polanski antagoniza a pureza principiológica, moral e inocente do catolicismo de Rosemary, com a insensibilidade do satanismo. Por quê? Vocês verão.
Voltemos. A partir de então, a protagonista começa a ter certeza de que há uma conspiração, sobretudo após ouvir de seu amigo Hutch que sem dúvida havia algo de errado. Este mesmo amigo a chama para uma conversa em particular num determinado lugar, mas infelizmente não consegue comparecer, pois “estranhamente” entra em coma e, dali a três meses, morre.
Porém, deixa para Rosemary um livro intitulado “Todos eles bruxos”, com o recado de que há um anagrama a ser feito com o nome de um dos personagens de quem o livro trata. Rosemary descobre que Steven Marcato, com uma certa mudança de letras, resulta em Roman Castevet, seu vizinho, aterrorizando-a. Vai atrás do Dr. Sapirstein mas, após sentir na sala de espera de seu consultório o mesmo cheiro do amuleto que ganhara, desespera-se ainda mais e vai atrás do Dr. Hill, outro médico obstetra, que parece ser sua única esperança. Este aparentemente acredita em sua história, mas permite que Guy e o Dr. Sapirstein busquem-na. Eles a levam para casa e conseguem aplicar-lhe injeção com tranqüilizante. Quando Rosemary acorda, seu filho já nascera, mas insistem em tentar convencê-la de que morrera.
É quando a protagonista resolve saber o que há por trás de uma porta do apartamento que fora bloqueada por um armário. O que há por detrás? Absolutamente nada? Delírio de Rosemary? Ou haveria de fato uma conspiração?
Deixo oculto a vocês o final super-interessante que tem este filme, que é um choque a todos.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Trilogia dos Apartamentos - Parte I - "Repulsa ao Sexo" (1965), de Roman Polanski



Momentos há, na história do cinema, em que certos Diretores resolvem filmar uma trilogia. E a trilogia não precisa ser sequencial ou planejada; basta que a temática seja convergente.
Foi assim que um de meus cineastas favoritos - Roman Polanski - capitaneou o surgimento de uma das mais magníficas trilogias cinematográficas, a chamada "Trilogia dos Apartamentos", encabeçada por "Repulsa ao Sexo", de 1965, seguida de "O bebê de Rosemary", de 1968, e finalizada por "O Inquilino", de 1976.
Por isso tive a ideia (mais um desafio que uma ideia) de comentar cada um deles, em sua ordem cronológica, ao modo de Polanski. O presente texto versa, destarte, como seu título antecipa, sobre o filme inaugural, "Repulsa ao Sexo".
Este filme inicial é indubitavelmente o mais forte e macabro dos três.
Ressalto, antes de mais nada, que seu título original é apenas “Repulsion” (Repulsa), evidentemente mais genérico que o da tradução. Os brasileiros assim o nomearam devido ao fato de o filme centrar-se na aversão á conjunção carnal da protagonista Carol Ledoux, interpretada pela belíssima Catherine Deneuve, cujo talento é flagrante, e viria a ser confirmado mais tarde em filmes como “A Bela da Tarde”, do espanhol Luis Buñuel, realizado em 1967. Porém, Carol é aversa não tão somente ao sexo, mas aos homens em geral e às relações estreitas que estes pretendem com as mulheres constituir. É indiscutível que a protagonista sofre de androfobia.
Trata-se de um roteiro simples, mas que nem por isso deixa a desejar.
Polanski fez questão de nos mostrá-la desde o princípio como alguém que possui algum tipo de transtorno. Basta a filmagem em plano detalhe de seu olho na sequência inicial para que identifiquemos isso. Está claro o efeito da degeneração de sua psique, o que já existia desde quando a história começa a ser contada. Se por coerção social, ou se é um transtorno psicossomático inato à personagem, não discutirei aqui. Tirem suas conclusões.
Carol trabalha como manicure, e vive num apartamento alugado com sua irmã Helen (Yvonne Furneaux). Nessa esteira, a fotografia é quase uma personagem, uma vez que é a responsável pela criação da atmosfera de penumbra e angústia que embalará o espectador em todo o transcorrer da película. Polanski optou por um preto e branco, onde prevalece o preto ao branco, fazendo lembrar o cinema noir. Somos levados a observar algo que hoje, de tão corriqueiro, nos passa tão despercebido quanto as desigualdades sociais ou os preconceitos: a pressão que os homens fazem sobre as mulheres com o intuito de conquistá-las.
Percorramos as ruas de Londres juntamente com Carol, e veremos o quanto se lhe chama a atenção, e o número de homens interessados. É claro que nem todas as mulheres recebem tal assédio; mas, por menor que seja, é sempre um constrangimento à posição auto-valorativa que a cultura lhes relegou.
Mas voltemos ao cerne da questão.
A “perseguição” é tamanha, que potencializa a androfobia de Carol, fazendo-a abandonar seu emprego e viver reclusa no apartamento. E o momento é crucial, pois a irmã viajara com o namorado, deixando-a, portanto, sozinha. É quando Carol passa a ter alucinações, como a de ver as paredes rachando ou ouvir passos do lado de fora de seu quarto.
A dicotomia delírio x realidade é manifesta neste filme à maneira que o Diretor imaginou para todos os filmes que versassem sobre esta temática. Isto significa que os dois posteriores estão também impregnados dela.
Aos poucos vemos a desagregação do resto de razão que ainda sobrava a Carol, quando ela mata 3 homens que visitaram seu apartamento: o primeiro, um estuprador (fica a dúvida se este era real); o segundo, um homem que desde o começo da narrativa tentava conquistá-la; o terceiro, o locador do imóvel.
O desespero kierkegaardiano do qual se torna vítima não é somente sintomático a nível individual, mas em escala nacional (ou até mesmo mundial, onde quer que a cultura seja similar a que ora se comenta). O que Polanski quer de nós é que abramos os olhos a esta massiva “perseguição masculina”, que oprime e sufoca as mulheres, perpetuando o machismo e obstando o progresso da igualdade entre os sexos. O grito de Carol é o grito cosmopolita das mulheres.
Agora só uma observação: ignorem o ruído que acompanha o filme do início ao fim, fruto de um péssimo lançamento da Cinemagia, única a disponibilizar até então no Brasil a película em questão; ignorem também o fato de o filme ter sido realizado na Inglaterra e ainda assim só existir áudio dublado em francês. Apesar disso, estarão diante de uma grande obra de arte.

segunda-feira, 29 de março de 2010

“Viridiana”, de Luis Buñuel (1961)


Falar em Luis Buñuel é falar, em primeiro lugar, em arte niilista. Não há sequer um filme do cineasta em que não se encontre uma boa dose de inquietação e subversão às convenções sociais que limitam a plena liberdade humana. Buñuel, expoente do surrealismo no cinema – que foi, inclusive, amigo íntimo de Salvador Dalí – não poderia ter deixado suas opiniões mais explícitas em um filme como o deixou em “Viridiana”.
Para começar, era ateu. Fica mais do que claro no filme, que tem um pano de fundo insistentemente eclesiástico, o modo com que Buñuel desconstrói a religião e diversos valores morais.
O primeiro exemplo disto é o próprio nome “Viridiana”, pertencente a uma santa católica do século XIII, que contrasta com a personalidade da personagem, como explicarei ao fim do texto. O uso do referido nome rendeu ao filme uma condenação, pelo Papa João XXIII, por blasfêmia e indecência.
Viridiana (Silvia Pinal) é uma moça jovem e bem atraente que, contudo, pretende tornar-se freira. Reside em um convento e é uma noviça. Sua vida tem um andamento notadamente pacífico e inalterável, até que a Madre Superiora a informa que um tio (Don Jaime) deseja vê-la. Este tio, explica a Madre, foi responsável pelo pagamento de diversas despesas, como o dote de Viridiana, por exemplo, razão pela qual seria injusto não fazer-lhe uma visita.
Tão logo chega à casa de Don Jaime (Fernando Rey) – onde mora também sua criada Ramona (Margarita Lozano), a criança, filha desta, e um outro criado –, é franca com este, dizendo que nunca lhe teve muito apreço, porque este sempre dera auxílio material, porém nunca calor humano.
O tio é retratado, em diversas críticas, como um pervertido. Não encaro desta maneira. O que ocorre, na verdade, pode ser explicado por um viés psicanalítico: trata-se da obsessão que tinha por sua amada (tia de Viridiana), que morrera no dia em que iam casar-se, e que fez com que Don Jaime a projetasse em Viridiana e acabasse por venerá-la, dada a enorme similaridade física entre as duas. Caso mais ou menos semelhante pode ser citado: o de “Um corpo que cai”, de Alfred Hitchcock, onde o protagonista torna-se obcecado por uma pintura de Carlota Valdez, que era deveras parecida com a mulher que este seguia, na qualidade de detetive, por quem acaba apaixonando-se. Mais adiante, o assunto tornará a ser discutido.
Prosseguindo, Viridiana instala-se na residência de Don Jaime e, a partir de então, muitas coisas curiosas são demonstradas.
Em primeiro lugar, a sensualidade da noviça é colocada em foco o mais cedo possível. Talvez desde o momento em que a personagem troca de roupa em seus aposentos de hóspede e, numa sequência magistral, é filmada retirando lentamente as meias; o faz com expressão, porém, de inocência. A retirada da roupa contrasta com a indumentária exagerada das mulheres clericais, que impede a valorização de sua beleza. Ou talvez pelo simples fato de ser muito bonita. E contrasta também com a polêmica questão da castidade, que é posta em cheque. Aí reside uma boa crítica, fundada no ódio que tinha Buñuel por costumes que levassem a inutilidades ou que fossem contra a natureza humana.
Neste ínterim, uma curiosa sequência chama a atenção. O momento em que o outro criado de Don Jaime está ordenhando as vacas, e Viridiana pede para fazê-lo também, porque gostaria de ter esta sensação, nunca antes experimentada. O modo com que segura o teto da vaca, e como isto é filmado em close, de forma relativamente demorada e sem música de acompanhamento, prendendo a atenção do espectador, faz crer que o teto do animal representa, de maneira bem sutil, o falo masculino. Eis outra crítica, até satírica, de Buñuel.
Com o passar dos dias na casa, Don Jaime percebe o quanto Viridiana segue diariamente ritos religiosos. Arma sua cama no chão, exibe às câmeras uma coroa de espinhos (idêntica à de Jesus), e veste-se com camisola de linho grosso – tecido considerado grosseiro, pois arranhava a pele. Tudo isto são signos da metaforização, que faz Buñuel, da auto-flagelação que Viridiana empreende, talvez por considerar-se alguém passional, capaz de desejar e amar como qualquer outro ser humano. De forma oportunista, a noviça é mostrada ainda como sonâmbula, em uma sequência na qual, trajada tal qual Jesus Cristo (descalça e com a camisola já referenciada, em ato de penitência), leva uma cesta até a lareira, remove seu conteúdo, enche-a de cinzas, e depois as deposita na cama de Don Jaime. Mais adiante, o espectador compreende o porquê disto: a própria Viridiana, questionada pelo tio a respeito deste ato, explica que as cinzas representam penitência e morte; ele, então, associa a primeira a Viridiana (por querer tornar-se freira), e a segunda a si próprio (como conseqüência da velhice). Entretanto, não é bem o que ocorre. Já chego lá.
Vale ressaltar que, em uma seqüência maravilhosa que precede o momento em que Don Jaime vê Viridiana em estado de sonambulismo, é mostrado em vias de vestir as roupas da sua falecida esposa, uma vez que calçara seu salto alto e já examinava o espartilho. Alguns podem interpretar nisto nuances de homossexualismo. Porém, o refuto. Acredito que tudo isto é, ainda, parte do transtorno desenvolvido por ele em razão da morte precoce da mulher amada, a qual, repito, projetava na protagonista. Acrescente-se que isto ocorre sob o embalo de música sacra (mais uma sátira, portanto). Em virtude deste transtorno, chega a pedir que vista-se de noiva e, após, a propor-lhe casamento. Viridiana acha isto um insulto, algo inadmissível, impossível de se consumar, dada a sua vocação religiosa. Desta feita ofende-se, e pretende deixar a casa, o que enseja a medida urgente de Don Jaime de dar-lhe um remédio para dormir. É quando chega quase ao ponto de aproveitar-se da moça, pois chega a beijar-lhe a boca e o colo, mas não passa disto. Porém, no desespero de mantê-la na casa a qualquer custo, conta a ela no dia seguinte que fez de tudo com seu corpo adormecido, e diz a ela que, em virtude disso, não poderia mais ser uma mulher clerical. Ao receber esta notícia, Viridiana fica transtornada, e quer ainda mais fortemente sair dali, o que realmente faz, não obstante o tio depois desmentir toda a história.
Viridiana sai. Don Jaime então suicida-se por enforcamento.
O mestre Buñuel não economiza em confrontar coisas antagônicas de maneira brutal. Exemplo disto é que, em uma das primeiras sequências do momento em que a noviça chega na casa de seu tio, é mostrada a criança, filha da empregada Ramona, pulando corda no quintal; pois bem, Don Jaime enforca-se com a mesma corda. Isto provoca o inevitável cotejo entre pureza e inocência infantil com o desespero atroz do suicídio, descortinando assim os dois lados do ser humano. A natureza do tio é completamente oposta à da sobrinha, tendo em vista a pureza desta. Esta pureza é constantemente apregoada, como na sequência em que pula corda juntamente com a criança, onde ocorre a equiparação das duas. Outra coisa: o suicídio de Don Jaime é feito nos moldes durkheimianos, ou seja, como ato social do feitio do ser humano, indo contra a visão – que Buñuel acaba colocando como hipócrita – cristã, que domina o ocidente.
A película em questão é absolutamente múltipla. Fica evidente para o espectador que há vários momentos (ou etapas). Parece muitos filmes em um.
Sendo assim, após a tragédia supramencionada, Viridiana é informada; sentindo-se culpada, desiste de tornar-se freira, deixa o convento, e passa a residir na casa que era de seu tio. Resolve então fazer dela um abrigo para mendigos, cuja intenção era não somente tirá-los das ruas, mas também dar-lhes trabalho e educá-los. Em uma palavra, civilizá-los. Porém, os paupérrimos indivíduos não comportam-se como o esperado. Bondade, generosidade, solidariedade são atos que ficam desmoralizados em face da ingratidão dos mendigos. Buñuel critica a perda de tempo humana na realização de atos inúteis, pois nos abre os olhos para a mesquinharia das pessoas, que querendo ser individualistas, não conhecem o conceito, e acabam sendo egoístas.
Outro fato marcante desta virada do filme é a chegada de Don Jorge (Francisco Rabal), filho do falecido. Ele faz o tipo “garanhão americano”, que logo apaixona-se por Viridiana, sua prima, embora o filme não deixe isso tão manifesto em momento algum.
Insisto em falar de Buñuel, pois um filme deste cineasta se explica pelo próprio cineasta. Assim, em dois momentos demonstra sua desesperança e seu pessimismo para com o mundo: quando Don Jorge compra um cachorro que estava atrelado à parte de baixo de uma charrete – na época era costume, pois caçavam coelhos – para livrá-lo dos maus tratos, mas, em seguida, outro é focalizado debaixo de outra charrete, e ele então vê que nada pode fazer para resolver o problema; e quando o rapaz diz a Viridiana que não adianta abrigar os mendigos e dar-lhes tudo de que precisam, pois há ainda outros tantos na mesma situação, e praticar o assistencialismo é só uma forma de apaziguar temporariamente a mazela, e apenas para algumas pessoas, de modo que ela irá, inevitavelmente, se perpetuar. O caso do cachorro é também uma crítica ao assistencialismo.
Outra grande ironia é a seqüência em que Don Jorge descobre um crucifixo que o pai guardava em uma gaveta, e percebe que é ao mesmo tempo um canivete.
Destaco agora aquelas que considero as 2 melhores seqüências do filme:
Primeiramente, a do o momento de reza no jardim, presidido por Viridiana. A casa de Don Jaime está neste momento sendo reformada, para ser adaptada a um albergue de mendigos. Alternadamente é exibida a reza e a atividade dos pedreiros. A construção e reforma da casa representam a desconstrução que deseja Buñuel fazer da ortodoxia cristã.
A outra admirável – e até mesmo surpreendente – seqüência é a da ceia dos mendigos, paródia feita à pintura intitulada “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci, aqui satirizada pelos modos aviltantes com que se portam; quando chegam ao ponto de tentar um ato sexual forçado com Viridiana, são finalmente expulsos.
Como era de se esperar – porque no cinema sempre há um pouco de previsibilidade –, o Diretor deixa implícito que Viridiana começa a apaixonar-se pelo primo, pois passa a explorar a própria beleza física, como na seqüência em que bate na porta de seu quarto e, abrí-la, Don Jorge se depara com uma Viridiana de cabelos soltos, exalando sensualidade. Mas, para evitar a pieguice que um beijo poderia provocar neste momento, Don Jorge apenas pergunta a ela se há algo de errado, se aconteceu alguma coisa. A mudança de Viridiana – em última análise, outra virada do filme – quer significar sua incursão (e a do próprio espectador) no bom lado do mundo não-eclesiástico, o que é patente na genial seqüência final, da qual não tratarei aqui. A intenção é mostrar o mundo de todos, recheado que é de paixões, sentimentos, apesar de todos os motivos que possam conduzir a desilusões, desesperanças, pessimismos, ou mesmo ao ateísmo.

sexta-feira, 19 de março de 2010

“Como era verde meu vale”, de John Ford (1941)

Após nos presentear com belíssimos westerns como “Rastros de Ódio” e “No Tempo das Diligências”, o diretor John Ford, que não só mostrou ao mundo que o cinema western é digno de aplausos, como também catapultou John Wayne ao sucesso, faz-nos render reverências mais uma vez com “Como era verde meu vale”. Principalmente por não seguir sua linha habitual, por não estar no terreno costumeiro do cineasta.
Trata-se de um drama, ambientado no País de Gales, na mesma época de sua produção.
O filme, contemplado que foi com 5 Oscars (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Fotografia em Preto e Branco, Melhor Direção de Arte em Branco e Preto e Melhor Ator Coadjuvante), faz jus à premiação. São poucos os filmes que nos emocionam não importa quantas vezes os assistamos, e este é um deles. Há críticas, por exemplo, pelo fato de que recebeu imerecidamente o Oscar de Melhor Filme, por tê-lo “tirado” de “Cidadão Kane”, de Orson Welles (considerado por muitos o melhor filme já feito).
Não obstante – e não tirando o mérito de “Cidadão Kane”, indiscutivelmente um filme impecável – “Como era verde meu vale” tem também seus prós.
Versa, acima de tudo, sobre a história de uma família. Mas o que é mais interessante é que agrega, como pano de fundo, elementos políticos, sociais, econômicos e morais; ainda por cima de maneira propositalmente escancarada. Daí poder-se dizer, qual o The New York Times, que é um filme de “grande charme e personalidade”.
Junte-se a isto o fato de ter sido produzido por Darryl F. Zanuck, um dos maiores produtores da história do cinema.
O protagonista é o garoto Huw Morgan (Roddy McDowall), caçula de uma prole composta por 6 irmãos ao todo (5 homens e uma mulher). Como era costume dizer-se nas peças escritas para serem encenadas no teatro, “quando o pano sobre” o narrador-personagem Huw Morgan, com 60 anos de idade, está prestes a deixar o vale onde residiu por toda a sua vida até então e, ao observá-lo destruído, sujo, e sentir falta de sua família e amigos – agora já falecidos – tem um momento nostálgico, e passa a lembrar-se detalhadamente dos bons (e maus) momentos de sua infância.
A partir de então, John Ford lança mão de dois elementos que nos fazem ter o mesmo sentimento saudosista de Huw: a trilha sonora deveras melancólica e a perfeita fotografia em preto e branco. Tudo isto nos deixa à vontade, fazendo com que nos sintamos personagens; parte do todo que é a história daquele lugar.
Vê-se as pessoas felizes e em harmonia, as tradições familiares, a cultura galesa de meados do séc. XX. Há uma ênfase enorme no dia-a-dia dos trabalhadores das minas de carvão (destaque-se que os 4 irmãos homens de Huw e seu pai também o eram). É recorrente no transcorrer do filme o modo como Ford insiste em nos mostrar a religiosidade, a força, a respeitabilidade e a honra das famílias. Fica mais do que explícita sua preocupação em demonstrar o quanto os costumes foram subvertidos pela modernização social que, em contrapartida, trouxe a degeneração cultural e o individualismo.
Ao longo da “fita”, há um desenrolar de acontecimentos de onde se depreende a decadência moral advinda dos primeiros ideais socialistas, o movimento operário, a luta pelos direitos sociais dos trabalhadores. Sempre se comenta a respeito do progresso que estas lutas trouxeram, mas nunca se explora o lado subversivo da bela e humana cultura. E isto vale para todo o mundo e para toda forma de progresso que sacrifique os costumes.
É emocionante acompanhar a trajetória de um menino inocente que, vendo a sociedade transformar-se tanto, mormente por se estar vivendo o período da 2ª Guerra Mundial, transforma-se também, passando a assimilar o que seus irmãos mais velhos já sabiam a respeito de união familiar; cite-se também a maturidade que ganhou com as brigas na escola (teve o privilégio de ser o único dos filhos a freqüentá-la), e o fato de que, não obstante havê-la concluído, resolver não ir para a faculdade, mas trabalhar nas minas como seu pai e seus irmãos.
Outra personagem curiosa é a sua única irmã, Angharad, interpretada por ninguém menos que Maureen O’Hara (de “Milagre na Rua 34”). É extremamente recatada, e educada para ser idêntica à mãe, isto é, viver para cuidar da casa, do marido e dos filhos. Porém, tem problemas quando acaba por apaixonar-se pelo padre do vilarejo, que corresponde ao sentimento, e acaba precisando ir embora. Angharad acaba casando-se com um homem rico, filho do dono das minas de carvão, e torna-se uma mulher infeliz; mas sempre com esperanças de um dia reencontrar o padre, e passar o resto de seus dias ao lado deste. É quando John Ford põe em campo um elemento na época muito rechaçado: cogitação de divórcio. Sempre representando a degeneração cultural e sua transição.
Filme apaixonante, capaz de arrebatar o coração de todos aqueles que consideram a família e suas tradições como valores intocáveis e, ao mesmo tempo, causar repúdio ante a deslindação dos antagonismos do progresso político e econômico, paradigma arraigado e eterno da humanidade.


quarta-feira, 10 de março de 2010

"A Imperatriz Vermelha", de Josef Von Sternberg (1934)


Diretamente da safra daquelas atrizes da época áurea hollywoodiana, aquelas divas charmosas, vanguardistas, à frente de seu tempo; destas, emerge Marlene Dietrich, que seguiu os passos de tantas outras atrizes que desempenhavam papéis de mulheres independentes e inteligentes, tais como Tallulah Bankhead, Audrey Hepburn, Rita Hayworth, dentre outras. Descoberta por Josef Von Sternberg, estrelou seu "O Anjo Azul", em 1930, e 4 anos depois nos brindou com esta obra-prima também de Sternberg: "A Imperatriz Vermelha".
O filme, de cunho histórico - ambientado no séc. XVIII -, visa retratar a história da Czarina Catarina II (Dietrich) da Rússia, uma das mais imponentes e polêmicas da História desta nação.
Escolhida ainda bem jovem, pela Imperatriz da época, para casar-se com Pedro (Sam Jaffe) - o grão-duque - e prover um novo herdeiro homem para o trono, deixou seus familiares e, ao chegar ao Palácio Real, na esperança de encontrar um homem alto, forte, cortês e culto, frustrou-se ao ver-se diante de um bestial, louco e terrivelmente feio ser humano, sendo obrigada ainda a mudar de nome - chamava-se àquele tempo Sophia Frederica - e de religião. Com tudo isto, além da postura altiva e adulta que o cargo reclamava, forçosamente amadureceu de maneira precoce, e tornou-se uma mulher fria, encarando aquele estereótipo da nobe ornamentada de jóias e cônscia do que representava para a sociedade. Contudo, por dentro, sempre manteve resquícios da jovem passional que era, e acabou por apaixonar-se pelo Conde Alexei (John Lodge), o que foi recíproco, e o filme deixa implícito que mantinham relações sexuais às escondidas, dados os encontros furtivos com o Conde, bilhetinhos que trocavam etc.
O filho nasce, a Imperatriz morre. Inclusive a Imperatriz é uma personagem tão severa e mal-humorada, que chega a ser engraçada para alguns, perturbadora para outros (para estes, sobretudo, por externar tanto amor à Monarquia russa, e por acreditar tão irredutivelmente estar ali por direito divino, demonstrando imenso conservadorismo ideológico; é que o diretor tenta demonstrar o quão angustiante era a sociedade da época, mormente para os súditos e, em geral, para aqueles que viviam sob o mesmo teto de pessoas desta espécie). Ressalte-se que o filme foi inspirado no diário da própria Catarina II, o que lhe confere maior intensidade e verossimilhança.
Completamente impregnado de erotismo quase que declarado, em analogia à promiscuidade que existia não só nesta Realeza, mas em muitas outras, de diferentes lugares e épocas, o filme constrói imagens sediciosas e intranquilas (ainda que discretas) ao âmago do espectador plácido, desmascarando o que de mais sórdido ocorria, revelando uma desordem moral comandada por pessoas mesquinhas, autoritárias, sádicas, cruéis, ao invés da boa impressão que nos passam algumas pinturas e alguns historiadores não compromissados com o lado amargo da verdade.
É de se destacar também que, devido ao fato de o filme ser de 1934, palmilhava-se ainda o terreno da transição do cinema mudo para o falado, o que é evidentemente perceptível durante todo o transcorrer da película, notadamente por grande parte ser musicada, por haver, de intervalos em intervalos (sempre que se passava de um importante momento para outro), letreiros que narravam a estória, e ainda acelerações na reprodução, o que era responsável por impedir a perda de concentração do espectador.
Outra coisa que chama também muita atenção é o vívido expressionismo importado da Alemanha, marcado por estátuas monstruosas, penumbra constante, expressões que incomodam (sobretudo a do grão-duque Pedro), entre outros elementos.
Filme interessantíssimo para quem quer descobrir o que acontecia nos "bastidores" da Rússia pré-Revolução e, é claro, para o fã de cinema.