Inglaterra,
começo da década de 1970, uma semana qualquer. Um médico homossexual de meia
idade e uma funcionária pública divorciada tem um jovem amante em comum, que os
visita alternadamente por períodos de poucos dias. Um sabe que o outro tem esse
mesmo amante, mas eles evitam trazer o assunto à tona. O contato de cada um com
seu “Adônis” é intermediado, em uma era pré-celular, por uma telefonista de um
serviço de recados. Ao dirigir seu carro, a mulher escuta no rádio as notícias
do momento, que falam sobre uma crise econômica em curso na Grã-Bretanha,
enquanto vai em direção à casa que serve à conjunção apaixonada com o mancebo,
na companhia inconveniente de diversas crianças intrometidas e assustadoramente inteligentes para a idade; essas crianças são filhas de um casal de amigos que
viajou, consentindo na permanência do outro casal em seu lar. Entrementes, o
médico atende seus pacientes em um consultório, dedicando-se a contemplar em
seus tempos livres o que se supõe ser uma obra de arte moderna (concebida pelo
amante) no jardim do imóvel. Este homem está subjugado pela solidão, mas não se
deixa abater, uma vez que espera ansiosamente a visita daquele a quem deseja
apaixonadamente.
É
este o panorama em que o cineasta britânico John Schlesinger nos situa em
“Domingo Maldito” (“Sunday Bloody Sunday”, 1971). Schlesinger já dirigira
àquela altura os filmes que o consagrariam, como “O Mundo Fabuloso de Billy
Liar” (“Billy Liar”, 1963), “Darling – A que Amou Demais” (“Darling”, 1965),
“Longe Deste Insensato Mundo” (“Far From the Madding Crowd”, 1967) e,
notadamente seu anterior, “Perdidos na Noite” (“Midnight Cowboy”, 1969), este
último tendo lhe granjeado as estatuetas de melhor filme, melhor diretor e
melhor roteiro adaptado naquele ano.
Para
além do micro, isto é, do enunciado narrativo em si, “Domingo Maldito” está
também inserido em um contexto macro de índole realista. Reflete aquilo que era
vivenciado pela sociedade da época e, portanto, não pode ser analisado senão em
conjunto com aspectos extrafílmicos. A crise econômica a que me referi afetou,
na verdade, não somente os britânicos, mas boa parte da Europa ocidental. Caracterizou-se
por uma queda na produção industrial, o que resultou em uma alta inflacionária
de preços, desemprego e iminente falência de setores importantes como o
siderúrgico e o de transportes aéreos. Era o prenúncio de uma catástrofe que
tomaria maiores proporções a partir de 1973.
Há
também o fator cultural. Como é do conhecimento de muitos, a geração de 1968
foi o estandarte de um momento de ruptura cultural geral, de reformulação de
conceitos morais; um primeiro passo em direção à pós-modernidade. Esta cisão,
por isso mesmo chamada de “contracultura”, com forte apelo nos EUA, saiu das
fronteiras deste país e foi gerar frutos em boa parte do mundo ocidental. Uma
verdadeira catarse coletiva que se fez sentir de modo irreversível, espicaçando
a ideologia conservadora que as gerações anacrônicas ainda proclamavam.
Pois
bem. Formado este mosaico social-político-econômico-cultural, o filme cria uma
ambientação visionária, prevendo que, ao ser assistido décadas mais tarde,
apresentaria essas questões como importantes elementos de significação. Digo
isso porque, aos olhos de um espectador do séc. XXI, cada coisa parece ter sido
encaixada ali como num filme atual de feição histórica (um
filme “de época”), situação em que já se tem em perspectiva geral tudo o que
acontecia e o que viria a acontecer posteriormente. Enquanto a situação dos
dois que estão ali a dividir um amante com certa naturalidade, e ainda
auxiliados por um sistema de telefonia pública, descortina o estatuto esmagador
da revolução sexual, que propunha uma libertação dos padrões socialmente
impostos, a crise econômica iminente, que atua como um verdadeiro fantasma a
permear o cotidiano das pessoas, não é uma insistência à toa: trata-se de uma
forma a mais de ressaltar que o momento era de transformação, que a sociedade
rumava a um caminho ainda indefinido, mas que precisava diferenciar-se do status quo vigente; uma perfeita
metáfora à vida sexual de vanguarda daqueles amantes. O vanguardismo é tão
flagrante que transborda, metalinguisticamente, para além dos limites
narrativos, fazendo do próprio filme, como obra de ficção, um discurso
inovador, o que fica expresso no beijo gay mostrado sem falseamentos. Há quem
pense que o beijo gay só surgiria décadas mais tarde em filmes como “O Segredo
de Brokeback Mountain” (“Brokeback Mountain”, Ang Lee, 2005). Mas já estava
aqui. Talvez pelo fato de o próprio diretor ser homossexual, o que lhe
impulsionou a escancarar o fato, como a reclamar-lhe dignidade. O tema lhe era
mesmo caro, tendo sido abordado em dois outros filmes seus: o já referido
“Perdidos na Noite” e o seu último, “Sobrou pra Você” (“The Next Best Thing”),
de 2000.
Um
ponto importante a se destacar é que, embora Alex Greville (Glenda Jackson) e
Daniel Hirsh (Peter Finch), o homem e a mulher em questão, não sejam jovens,
eles representam já a transição para uma outra instância cultural, sobretudo na
figura da primeira. Isso fica muito claro na sequência em que ela conversa com
a mãe, que lhe conta das dificuldades sofridas no casamento, quando chegou a
efetivar uma separação, mas depois retornou ao convívio de seu marido, por não
suportar o afastamento e a vida de solteira. Alex a critica pela postura
dependente, e mais tarde vê-se dependente de Bob Elkin (Murray Head), seu
amante, o que lhe causa terror. Ao mesmo tempo em que procurava assumir uma
postura “nova”, mais consentânea com os costumes emergentes, parte de si ainda
era ligada aos velhos costumes. Pura transição, que era apenas um caso de
muitos. De outra banda, Daniel, que é judeu, precisa lidar com a necessidade de
manter, perante a família e a sinagoga que frequenta, a aparência de ser
heterossexual e levar uma vida conforme à tradição dogmática judaica. Nesse
diapasão, a relação dificultosa que cada qual mantém com o jovem Elkin representa
nada menos que a alegoria do assombro diante da necessidade de se lidar com uma
nova vida, que mudava rapidamente, num rompante social quase que histérico.
Talvez
o momento apoteótico, o paroxismo último de derrocada de paradigmas, seja o
seguinte: Alex e Bob, após passarem a noite de sexta-feira juntos na casa que
lhes fora emprestada, acordam com a presença das crianças no quarto, que logo
começam, com toda a espontaneidade do mundo, a fumar maconha à beira da cama.
Alex, com um olhar de censura, resolve então questioná-las:
– Estão fumando maconha?
No
que uma outra esperta criança contrapõe:
– Você
é burguesa?
Estamos
diante aqui de um filme que pode não causar empatia em um primeiro momento – ou
até mesmo não causá-la em momento algum. Isso por força da quase ausente trilha
sonora, e de um ritmo que só pode ser melhor acompanhado a partir de um segundo
contato com a obra. Para completar, enquanto tudo parece caminhar a um desfecho
linear comum, a narrativa nos apresenta um desvio inesperado, que conduz a
eventos aparentemente incompreensíveis, se acompanhados sem a devida atenção. O
filme é traiçoeiro na medida em que, após deixar o espectador relaxar,
surpreende-lhe exigindo a máxima imersão e participação, e desembocando em uma
cena final excelente.
Outrossim,
não se trata de um drama típico. Nem um grito sequer é dado, há economia de choro.
O domingo sangrento a que o título original se refere é o dia de uma hemorragia
da alma; alma daqueles que, ao ousarem amar a pessoa errada e assumir os
riscos, tem de aceitar calados seu destino de infelicidade e solidão.
No
mais, acredito que esse é um exemplar daqueles filmes com “efeito retardado”,
que a princípio nos atordoam e distanciam, mas instigam o espectador mais
interessado a retornar aos seus domínios e perscrutar seus mistérios. Mais uma
recomendação feita, seguindo a proposta e o formato deste blog.