"La vie d'Adèle" é
uma adaptação dos capítulos 1 e 2 da graphic novel "Le bleu est une
couleur chaude", de Julie Maroh. Chegou ao Brasil com o título de
"Azul é a cor mais quente" (fiel ao título da obra em quadrinhos,
portanto). O título original do filme não optou pela fidelidade ao da graphic
novel, preferindo seu realizador estabelecer uma relação com determinada obra
literária, o que adiante será esmiuçado. Vencedor da Palma de Ouro no último
Festival de Cannes (que ineditamente estendeu o prêmio às atrizes
protagonistas), o quinto longa do cineasta tunisiano Abdellatif Kechiche,
rodado na França, apresenta-nos a história de Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma
adolescente que, após fracassar em sua tentativa de iniciar um relacionamento
heterossexual com um rapaz da escola, descobre-se paulatinamente apaixonada por
uma mulher de cabelos azuis (Emma, interpretada por Léa Seydoux).
Com muita maestria, Kechiche
nos conduz ao universo da homossexualidade desde o âmbito dos primeiros olhares
até o da sexualidade intensa, situando-o numa perspectiva para lá de humanizada,
equiparada em tudo ao amor hétero, como não poderia deixar de ser. Sem economizar
em realismo, o filme faz jus à tradição cinematográfica europeia, que nos traz
uma mensagem talhada no bojo da narrativa, e não no pós-narrativo esculpido por
algum fechamento impactante capaz de solucionar a problemática posta (até mesmo
porque este não é o desfecho da graphic novel). Aproximando-se de uma fidedigna
linguagem de mundo, o filme busca e de fato alcança a verossimilhança, ao
contar uma história ficcional que em nada perde para os relatos que conhecemos
de pessoas e situações da vida mesma. Resta garantida a imersão do espectador e
identificação total com as personagens, que poderíamos ser nós ou outrem a quem
conhecemos; as 3h de metragem passam e nem sentimos.
Estão de parabéns as atrizes
que desempenham os papéis principais, ambas sintonizadas com o espírito das
personagens e da história, e que souberam muito bem veicular um subtexto
condizente com o roteiro, talvez até para além do previsto. Como o filme não
pretende contar a história integral da vida de Adèle, mas tão somente um
período de alguns anos da juventude marcante da personagem, o olhar está
voltado para os rituais de sua “iniciação” como mulher, que abrange a relação
com a família e os amigos de Emma e sua descoberta sexual, em longas e
estonteantes sequências de sexo explícito. Note-se, porém, que nessas
sequências não há nada de apelativo ou vulgar: é pura poesia. Lamentável o fato de haver sido recusada a distribuição em blu-ray do filme no Brasil por culpa dessas sequências, ainda mais por envolverem duas mulheres. Esperemos que este quadro mude.
Meu elogio também vai para os
enquadramentos, que abusam de planos detalhe, gerando um efeito intimista apto
a revelar os mais ínsitos pensamentos e sentimentos dos sujeitos narrativos;
sujeitos estes que exercem papel bem ativo na construção da película,
totalmente em paralelo às orientações do diretor, resultando num acréscimo
prestimoso.
A propósito da direção de
arte, há um azul onipresente a permear a narrativa. Além do cabelo de Emma, no
capítulo 1, está em objetos diversos, tais como itens de decoração e roupas,
fazendo lembrar “A liberdade é azul” (1993), de Krzysztof Kieslowski. A
simbologia do azul encontra significação em sentimentos como fidelidade,
segurança, tranquilidade. É exatamente o que Emma transmite a Adèle. Porém, num
segundo momento, quando já não estão mais juntas, ocorre persistência visual da
cor, como a representar a persistência do amor da segunda pela primeira, da
sensação de perda da paz e completude que antes reinava, que só o amor era
capaz de garantir.
Não poderia, ainda, deixar
de declinar minha admiração pela força intelectual do roteiro, que congrega aos
montes menções de escritores, filósofos e suas obras, tornadas possíveis pelo
fato de Adèle ser estudante de literatura francesa. Assim, entram em campo a
"Antígona", de Sófocles (tragédia grega que estabelece um contraponto
entre a fé nas leis divinas e a iniquidade das leis humanas), o existencialismo
de Sartre e sua ideia central da responsabilidade individual, dentre outros.
Porém, sem dúvida, a obra "A vida de Marianne", de Marivaux, é a que
mais se coaduna com a situação de Adéle. Oriundo do séc. XVIII, o livro é um
dos elementos que melhor compõem o inteligente jogo simbolista do filme, ao
cotejar nas entrelinhas a história de Marianne – uma garota órfã ingênua e
sempre de boa-fé que irá sofrer diversos infortúnios, deparando-se com a
realidade do mundo – com a de Adèle, que é dotada da mesma ingenuidade e boa-fé
e, embora não órfã, tem pais que, em sua única aparição, demonstram que seriam
incompreensivos ante sua sexualidade (o que se irá supor com firmeza mais tarde,
quando a vemos morando sozinha), além de aparentarem pouco afeto e proximidade
com a filha. Assim, Adèle precisa enfrentar o mundo e sua dureza com as
próprias pernas, e sofrer os infortúnios de amar somados ao de ser homossexual.
“La vie de Marianne” é, sob certos aspectos, “La vie d’Adèle”.
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